A relevância da alienação de ativos para a  recuperação da empresa, sem qualquer sucessão para o adquirente

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27/06/2023
Das Modalidades de Planos de Recuperação Judicial possíveis no âmbito da Consolidação Processual
28/08/2023
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Autores*: Márcia Ferreira Ventosa, Thaís Vilela Oliveira Santos, Arthur Santos Gonçalves

 

No sistema econômico capitalista, o risco é elemento intrínseco à empresa. O exercício da atividade empresarial implica: na necessidade de conquistar o mercado; fidelizar os clientes, sem desprezar a necessidade de ampliá-los; gerenciar os fatores de produção; gerir os conflitos societários; lidar com inadimplemento; gerenciar a concorrência local e entrantes; lidar com fatores externos; e, no contexto do século XXI, gerenciar as redes sociais do próprio empresário e de todos os agentes que possuem relação com a empresa.

Diante de tantos fatores aptos a causar impactos na empresa, o empresário pode vir a experimentar uma crise financeira temporária, a partir de uma queda inesperada no seu faturamento causada, por exemplo, por uma má gestão de marketing, ou ainda, de modo mais abrangente, uma crise à nível nacional ou global (tal como a causada pela pandemia da COVID-19), vindo a dificultar o adimplemento das obrigações, e até mesmo a manutenção da atividade empresarial. Em outras palavras, o empresário poderá ser acometido por uma crise de liquidez da empresa.

Assim, objetivando viabilizar o acesso ao crédito e a obtenção de novos recursos financeiros, ainda que esteja a sociedade empresária em crise e em processo de recuperação judicial, é que a Lei 11.101/2005 (LREF) autoriza a alienação dos próprios ativos, desde que respeitadas as normas específicas. A visão do instituto sobre tal possibilidade, até então tratada como ato falimentar pelo revogado Decreto-Lei 7.661/45, evoluiu para uma fundamental ferramenta para preservar a empresa e a sua função social, conforme comando inserto no art. 47 da Lei 11.101/05, viabilizando a concentração dos recursos no desenvolvimento da atividade e a redução de custos de manutenção da empresa.

Para tanto, o art. 66, caput, da Lei 11.101/2005 prevê que, após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o empresário poderá alienar ou onerar o ativo não circulante após a oitiva do Comitê de Credores, se houver, e mediante autorização judicial, podendo, inclusive, desde logo, já haver tal previsão no plano de recuperação judicial aprovado.

Por seu turno, caso esteja prevista a alienação de filial ou unidade produtiva isolada (UPI) no plano de recuperação judicial, o juiz ordenará a sua realização, conforme aprovado pela Assembleia Geral de Credores, nos termos do art. 60, caput, da Lei 11.101/2005. A partir do disposto no art. 60-A, caput, da LREF, restou definitivamente alargado o conceito de UPI, conforme leciona Marcelo Barbosa Sacramone: “a Unidade Produtiva Isolada poderá abranger bens, direitos ou ativos de qualquer natureza, tangíveis ou intangíveis, isolados ou em conjunto, incluídas participações dos sócios.[1].

A medida é de extrema importância. Com o pedido de recuperação judicial, o empresário passa a encontrar um óbice insuperável na obtenção de crédito, em especial junto às instituições financeiras quando realizada a análise do risco, ante a fragilidade na capacidade financeira em decorrência da condição da sociedade em reestruturação. Assim, a venda ou oneração de bens ou ativos da empresa é uma das ferramentas de fácil aceitação dos credores e do judiciário, além de ser um meio usual para obtenção de capital na viabilização da reestruturação empresarial.

Em que pese se tratar de uma medida que conta com autorização legal para sua alienação, certas vertentes de mercado ainda tinham um olhar temerário em relação à aquisição desses bens, em razão de eventual sucessão de obrigações e de ônus relacionados aos bens, como obrigações trabalhistas e tributárias. A consequência disso era a inclusão, na composição do preço, o custo do risco no valor da aquisição, o que impactavam negativamente no sucesso e nos valores das operações.

A redação original da Lei 11.101/2005 previa que o objeto de alienação estaria livre de qualquer ônus e obrigações relacionadas ao bem, inclusive de natureza tributária, salvo quando adquirido com intuito de fraude, ou por sócio do devedor, parente em linha reta ou colateral até o quarto grau, consanguíneo ou afim, do devedor ou do sócio do empresário.

Nas palavras do próprio relator da lei, o Senador Ramez Tebet:

Ao estabelecer a oferta para a compra da empresa, os interessados evidentemente levam em consideração todos os fatores que possam diminuir o valor do negócio. Se a empresa oferecida leva consigo a carga das obrigações tributárias anteriores à venda, não pode haver dúvidas de que o mercado não negligenciará essa informação e o valor oferecido naturalmente sofrerá a redução correspondente às obrigações transferidas ao arrematante. No entanto, como essas obrigações estão cercadas de incertezas quanto a seu valor, é bastante comum que a estimativa dessa dívida potencial seja superestimada. Com isso, os valores de venda podem ser sistematicamente rebaixados. Como é a venda dos ativos, em conjunto ou em separado, que garante os créditos trabalhistas e tributários, é do interesse do fisco e dos trabalhadores que o valor de venda seja maximizado. Assim, embora pareça contrário à intuição, a sucessão não traz vantagens aos cofres públicos ou aos trabalhadores.[2]

O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do referido dispositivo legal. Destaca-se parte do voto do relator Ministro Ricardo Lewandowski:

Por essas razões, entendo que os arts. 60, parágrafo único, e 141, II, do texto legal em comento mostram-se constitucionalmente hígidos no aspecto em que estabelecem a inocorrência de sucessão dos créditos trabalhistas, particularmente porque o legislador ordinário, ao concebe-los, optou por dar concreção a determinados valores constitucionais, a saber, a livre iniciativa e a função social da propriedade – de cujas manifestações a empresa é uma das mais conspícuas – em detrimento de outros, com igual densidade axiológica, eis que os reputou mais adequados ao tratamento da matéria.[3]

Não obstante a pretensão do legislador e a declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, ainda havia eventual desconforto dos interessados na aquisição de tais bens, em razão de decisões proferidas em primeira instância, reconhecendo responsabilidade por débitos de naturezas diversas.

Desta forma, com a reforma promovida pela Lei 14.112/2020, o dispositivo legal passou a fazer menção expressa, meramente exemplificativa, da não sucessão nas obrigações de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista. Essa disposição legal foi repetida no: art. 60, parágrafo único; art. 66, §3º; e art. 141, II, todos da referida LREF.

A rigor, essa elucidação não seria necessária, dada a abrangência original da regra de não sucessão. Inegavelmente, contudo, traz maior clareza aos envolvidos e mitigam, de forma significativa, o campo interpretativo, especialmente das justiças especializadas, a respeito de eventuais exceções a esse benefício.

Para que o adquirente receba o bem livre de ônus e obrigações, a alienação deverá ser realizada por intermédio de alguma das modalidades previstas ou aprovadas nos termos da lei, que pode ser através de leilão, processo competitivo organizado por agente econômico ou qualquer outra forma lícita[4]. Nesse ponto, exsurge a questão da venda direta de bens.

Em sua redação original, o art. 142 da LREF previa que a alienação deveria ocorrer por leilão, proposta fechada ou pregão, levando os tribunais ao entendimento de que a venda direta acarretaria sucessão obrigacional para o adquirente. Nesse sentido, destaca-se o voto de lavra da relatora Desembargadora Mônica Maria Costa, em recurso interposto na recuperação judicial da Oi:

A inexistência de imposição legal à alienação de ativos isolados (bens móveis, imóveis, etc.) da empresa em recuperação judicial por uma das modalidades previstas no art. 142, da LFRE, não conduz ao afastamento da sucessão do adquirente nas obrigações do devedor nas hipóteses em que a alienação não se opera na modalidade judicial.

(….)

Por todos os ângulos, somente nas hipóteses de alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, realizadas na forma e procedimento previstos no art. 60 e 142, ambos da LRJF, é que o objeto da alienação estará livre de quaisquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor.[5]

Contudo, a Lei 14.112/2020 alterou as modalidades previstas no art. 142 da LREF, ampliando as possibilidades, permitindo a alienação por meio de qualquer modalidade lícita. Para tanto, o art. 142, §3º-B da LREF impõe a necessidade de previsão expressa no plano de recuperação judicial e sua respectiva aprovação pela Assembleia Geral de Credores. Em não satisfeito esse requisito, a alienação poderá ocorrer mediante prévia autorização judicial, condicionada a manifestação do Administrador Judicial e do Comitê de Credores. Independente da modalidade, desde que preenchidos esses requisitos, a alienação será considerada judicial, nos termos do art. 142, §8º da LREF.

Assim, caso a venda direta atenda aos requisitos previstos no art. 142, §3º-B da LREF, será considerada alienação judicial, e, portanto, estará livre de sucessão, nos termos do art. 141, II, da LREF. Esse é o posicionamento acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai do acórdão lavrado pela Terceira Turma, de relatoria do ministro Moura Ribeiro:

Quanto aos ônus sobre os bens, o parágrafo único do art. 60 estabelece que o objeto da alienação deles está livre de ônus, sem sucessão do arrematante nas obrigações do devedor.

Por óbvio, considerando a finalidade da lei, tal disposição aplica-se tanto às vendas judiciais como a outras modalidades de alienação.

(…)

Destaque-se que a Lei 14.112/2020 trouxe alterações significativas à LRF, em especial ao art. 142 que, em seu inciso V, estabeleceu a possibilidade de qualquer outra modalidade de alienação de bens, desde que aprovada nos termos desta lei e acrescentou o parágrafo 8º, a seguir transcrito (…).[6]

Logo, com a alteração da LREF trazida pela Lei 14.112.2020, a segurança trazida ao adquirente do bem alienado é benéfica não somente à ele, mas ao processo, à comunidade de credores, e ao próprio empresário em recuperação, dado que haverá maior probabilidade de concretização de operações de alienação de ativos, maximizando a possibilidade de efetiva recuperação da empresa e da atividade econômica, reestruturando  a dívida, protegendo os demais ativos, permitindo a alocação de elementos de produção e, em última análise, realizando o princípio da preservação da empresa e sua função social.

 

Referências:

 

Bibliografia

SACRAMONE, Marcelo. Comentário à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4ª edição. Editora SaraivaJur: São Paulo, 2023. p. 327.

 

TEBET, Ramez. Parecer sobre o PLC nº 71, de 2003. Disponível em:< https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/63304>. Acesso em 01 de ago. 2021. p. 39.

 

Jurisprudência

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.854.493/SP. Relator ministro Moura Ribeiro. Terceira Turma, julgado em 23/8/2022. p. 20-21.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.934. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2009. p. 16.

 

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0023413-42.2020.8.19.0000. Relatora desembargadora Mônica Maria Costa. 8ª Câmara Cível. Julgado em 29/06/2020. p. 586-587

 

[1] SACRAMONE, Marcelo. Comentário à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4ª edição. Editora SaraivaJur: São Paulo, 2023. p. 327.

[2]TEBET, Ramez. Parecer sobre o PLC nº 71, de 2003. Disponível em:< https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/63304>. Acesso em 01 de ago. 2021. p. 39.

 

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.934. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2009. p. 16.

[4] Art. 142. A alienação de bens dar-se-á por uma das seguintes modalidades:

I – leilão eletrônico, presencial ou híbrido;

IV – processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso;

V – qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei

 

[5] Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0023413-42.2020.8.19.0000. Relatora desembargadora Mônica Maria Costa. 8ª Câmara Cível. Julgado em 29/06/2020. p. 586-587

[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.854.493/SP. Relator ministro Moura Ribeiro. Terceira Turma, julgado em 23/8/2022. p. 20-21.

 

Márcia Ferreira Ventosa -Advogada com mais de 25 anos de atuação nas áreas Cível e Empresarial. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM); em Gestão – Programa de Desenvolvimento de Dirigentes do PAEX, pela Fundação Dom Cabral. Extensão Universitária em Recuperação Judicial de Empresas e Falência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-São Paulo); em Direito Processual: Recuperação Judicial: Novos problemas e novas soluções pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OABSP-ESA); em Falências e Recuperações Judiciais – Pós Reforma da Lei 11.101/2005, proveniente da Lei  14.112/2020 pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OABSP-ESA).  marcia.ventosa@cchdc.com.br | fvmarcia@hotmail.com

Thaís Vilela Oliveira Santos – Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM); Especialista em Recuperação Judicial de Empresas e Falência pela Faculdade (FADISP); Extensão Universitária em Falências e Recuperações Judiciais – Pós Reforma da Lei 11.101/2005, proveniente da Lei 14.112/2020 pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OABSP-ESA).  thais.santos@cchdc.com.br | thais_vilela@hotmail.com

Arthur Santos Gonçalves – Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado atuante na área de recuperação de empresas e falência. santos.arthur21@gmail.com

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