STJ x STF: a necessidade de apresentação de certidão negativa de débito tributário como requisito para concessão de recuperação judicial

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*Geraldo Fonseca de Barros Neto / Sophia Ismerim Correia – 

Seguindo sua jurisprudência consolidada, o Superior Tribunal de Justiça negou provimento a mais um dos recursos especiais da Fazenda Nacional pautado na violação ao art. 57 da Lei n. 11.101/2005, que exige a apresentação de certidão negativa de débitos tributários (CND) para a concessão de recuperação judicial. Entendeu a Terceira Turma do STJ, por unanimidade, que CND é dispensável.

Segundo o voto da relatora Ministra Nancy Andrighi, a demonstração de regularidade fiscal do devedor deve andar de mãos dadas com os objetivos e princípios que estruturam a Lei 11.101/2005, razão pela qual exigir a apresentação de CND poderia inviabilizar a preservação da empresa, objetivo central da recuperação judicial.

A Fazenda Nacional buscou uma alternativa criativa: formulou Reclamação ao Supremo Tribunal Federal (STF), por usurpação de competência (art. 102, I, l, da Constituição Federal e art. 988, I e II, do Código de Processo Civil).[1] É que, para afastar a aplicação de um dispositivo legal por inconstitucionalidade, o STJ deveria ter julgado o caso pelo plenário, como impõe o art. 97 da Constituição Federal. Como o acórdão do STJ não falava diretamente em inconstitucionalidade (mas em incompatibilidade do art. 191-A do Código Tributário Nacional e do art. 57 da Lei n. 11.101/2005, que exige a CND, com o art. 47 da mesma lei, que prega pela preservação da empresa, a Fazenda Nacional suscitou a Súmula Vinculante n. 10[2], que reserva o plenário mesmo se a declaração da inconstitucionalidade é tácita.

Recebendo a Reclamação, o Ministro Presidente do STF, Luiz Fux, concedeu liminar suspendendo os efeitos do acórdão do STJ. Segundo Fux, a inexigibilidade da CND, como requisito para concessão da recuperação judicial após a aprovação do plano apresentado, abre espaço para que os processos de execução fiscal continuem, o que pode resultar na constrição de bens que tenham sido objeto do plano de recuperação judicial.

De fato, o Código Tributário Nacional, conforme seu artigo 187, caput,[3] exclui o crédito fiscal da sujeição ao processo de recuperação judicial, sendo que a própria LFRJ prevê, no artigo 6º, § 7º [4], que as execuções fiscais não serão suspensas em razão do deferimento do pedido de recuperação judicial.

Porém, mesmo diante da preferência do crédito tributário, mecanismos parecem ter sido criados para que o soerguimento da empresa em recuperação judicial não seja afetado. Segundo a LFRJ, o juízo recuperacional deferirá o processamento do pedido “dispensando a apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”.[5]

Percebe-se, portanto, que a grande discussão mora no momento da homologação do plano de recuperação judicial pelo juízo competente. Se, de um lado, temos o interesse público na cobrança do crédito tributário, do outro temos o princípio da conservação da empresa, cerne da Lei 11.101/2005, que procura manter no mercado negócios economicamente viáveis.

A legislação falimentar brasileira tem enfrentado uma espécie de dualismo pendular, ou seja, ora privilegia os interesses dos credores, ora os interesses dos devedores, conforme suas nuances. Dentro deste tão problemático dualismo, a LFRJ também parece procurar otimizar o interesse público.

Atualmente, é quase impossível separar o interesse público do interesse da empresa em crise. É muito claro que a legislação falimentar, há tempos, interfere no plano econômico e social, sendo que a crise empresária não pode ser vista como um litígio pontual entre credores e devedores. A atividade empresária, como é de conhecimento geral, tem impacto em outros grandes setores sociais, principalmente com relação à arrecadação de tributos.

De forma inaugural, já em seu artigo 47[6], a LFRJ lista uma série de objetivos legais, dentre eles o da superação da situação de crise econômico – financeira da empresa devedora. Este princípio tem como principal propósito não só manter o interesse dos credores sujeitos à recuperação judicial, mas também de toda uma ordem social que visa estimular o crescimento econômico do país.

Pensando nisso, a exigência de certidões negativas de débitos tributários, para a concessão da recuperação judicial da empresa em crise, foi desenhada com uma única meta: que o devedor regularizasse a sua situação a partir do pedido de parcelamento de débitos tributários junto ao fisco, a fim de evitar o ajuizamento de recuperações judiciais com o intuito de burlar as regras fazendárias.

Segundo os argumentos trazidos pela Fazenda Nacional, quando o assunto é a essencialidade ou não da apresentação das certidões negativas de débitos tributários, com a publicação da Lei 13.043, que instituiu o parcelamento especial para as empresas em recuperação judicial, a mora legislativa utilizada como pretexto para a flexibilização da aplicação do artigo 57 da LFRJ pelos Tribunais estaduais, bem como pelo próprio STJ, encontra-se suprida desde 2014, razão pela qual o tão comentado artigo deve ser aplicado em todos os casos.

Porém, é exatamente aí que mora o problema: é possível estimar a capacidade de soerguimento de uma empresa em recuperação judicial a partir de suas possibilidades de transação com o fisco? Ou seria desproporcional exigir a obtenção de certidões negativas de débitos tributários como requisito para que o plano de recuperação, já aprovado pelos credores, seja colocado em prática?

Para entender essa questão, é necessário buscar a finalidade de uma certidão negativa de débito fiscal (CND).

A certidão é o documento que atesta a inexistência ou a existência de débitos tributários, porém com a exigibilidade suspensa. Ou seja, nada mais é do que uma prova de regularidade fiscal.

Diversos são os casos legalmente previstos que a realização de qualquer objetivo está condicionada à apresentação das CNDs. A título de exemplo, podemos mencionar o artigo 655, IV, do CPC[7], que condiciona a partilha dos bens do de cujus à “prova de quitação de impostos”. É o que ocorre, também, para a habilitação de empresas em processos de licitação, sendo que, conforme artigo 27, inciso IV, da Lei 8.666/93[8], a comprovação de regularidade fiscal é requisito essencial para que a empresa seja capaz de participar dos referidos procedimentos licitatórios.

Assim como com a LFRJ, nos dois casos mencionados à título de exemplo há notável interesse público envolvido.

Sob a perspectiva do fisco, bem como do próprio poder judiciário em certos casos, a apresentação de certidões negativas se mostra como uma forma de recorte: empresas economicamente viáveis, capazes de realizar os objetivos aos quais a Lei 11.101/2005 se propõe, têm capacidade de realizar o parcelamento de seus débitos, de discuti-los ou, até mesmo, oferecer bens à penhora, com o objetivo de evitar constrições indesejadas, a fim de que sua situação fiscal seja regularizada.

Porém, em que pese todo o aparato legislativo criado e os objetivos da LFRJ, o cenário esperado pelo fisco não parece ser tão simples.

Mesmo após a promulgação da Lei 13.043/2014, a jurisprudência dos Tribunais estaduais e do STJ, de modo sensível à situação das empresas recuperandas, têm decidido por afastar a aplicação dos artigos 57 da Lei 11.101/2005 e 191-A do CTN, isso porque a Lei que institui parcelamento específico para as empresas em recuperação judicial apresenta suas falácias.

A partir de uma primeira análise da Lei 13.043/2014, nota-se, de pronto, que o problema do parcelamento de débitos tributários continua no que diz respeito às dívidas fazendárias estaduais e municipais.

Diante desse cenário, as decisões que afastam a aplicabilidade dos artigos mencionados costumam argumentar que (i) a concessão da recuperação judicial não impede que o fisco cobre, separadamente, seus débitos e que, (ii) a legislação hoje vigente sequer fixou um prazo para a apreciação do pedido de parcelamento a ser realizado pelas recuperandas, o que pode causar certo desconforto no momento do cumprimento do plano de recuperação apresentado.

Buscando ampliar as hipóteses de parcelamento e, consequentemente, de regularizar a situação de empresas inadimplentes perante o fisco, foi publicada a Lei 13.988 em 14 de abril deste ano, que previu a possibilidade de a União realizar transação do débito em aberto nas hipóteses ali especificadas.

De forma bastante simplificada, a nova Lei não traz grandes perspectivas para as empresas que enfrentam grandes dificuldades econômicas. Para os devedores em geral, excluindo-se as microempresas e empresas de pequeno porte, não é permitido que se reduza o montante principal do crédito, nem que seu valor total seja reduzido a menos de 50%. O prazo para quitação da dívida também não pode ultrapassar 84 meses.

Assim, mesmo com a possibilidade de redução do montante devido à título de tributos, nos termos do proposto pelas Leis 13.988/2020 e 13.043/2014, a transação e o parcelamento destes débitos parece ser algo bastante distante da realidade econômica das empresas em recuperação judicial.

Outra grande questão há que ser destacada: o atual projeto de lei 4458, ora no Senado, prevê convolação da recuperação judicial em falência, em caso de rompimento de parcelamento tributário

Assim, duas grandes discussões parecem entrar em choque: a possibilidade e a efetividade das transações, em matéria tributária, com contribuintes em recuperação judicial versus o objetivo ao qual se propõe a Lei de Recuperações Judiciais e Falência.

Em que pese caminharmos em solo ainda pouco explorado, uma conclusão pode ser tirada de antemão: parece que o fisco se tornou uma forte peça no tabuleiro das recuperações judiciais.

 

 

[1] Reclamação 43.169

[2] “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. ”

[3] Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

[4]Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. § 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.

[5] Conforme artigo 52, inciso II, da Lei 11.101/2005.

[6] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

 

[7] Art. 655. Transitada em julgado a sentença mencionada no art. 654, receberá o herdeiro os bens que lhe tocarem e um formal de partilha, do qual constarão as seguintes peças: IV – quitação dos impostos;

[8] Art. 27.  Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: IV – regularidade fiscal e trabalhista.

Geraldo Fonseca – Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da PUC-Campinas. Coordenador da Especialização da PUC-Campinas. Professor convidado na pós-graduação da PUC-SP, da PUC-Rio e da UFMT. Sócio do FVA | Fonseca Vannucci Abreu Advogados.

Sophia Ismerim Correia – Estudante de Direito do 5º ano da PUC-Campinas. Estagiária do FVA | Fonseca Vannucci Abreu Advogados. Membro do Grupo de Estudos de Insolvência Empresarial da PUC-Campinas (GE-Insol).

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