As Perspectivas de Mudança na Recuperação Judicial do Produtor Rural: Breves Comentários sobre as Propostas de Alteração da Lei

STJ x STF: a necessidade de apresentação de certidão negativa de débito tributário como requisito para concessão de recuperação judicial
22/11/2020
Juízo de admissibilidade do pedido de Recuperação Judicial e constatação prévia
29/01/2021
STJ x STF: a necessidade de apresentação de certidão negativa de débito tributário como requisito para concessão de recuperação judicial
22/11/2020
Juízo de admissibilidade do pedido de Recuperação Judicial e constatação prévia
29/01/2021

Geraldo Fonseca de Barros Neto / Lizah Ellen Geld Ribeiro – 

Desde a promulgação da Lei n. 11.101/2005, que criou o novo regime de tratamento da insolvência empresarial, foram vários os projetos legislativos voltados à sua alteração, adequação e modernização. Um dos primeiros projetos relevantes foi o PL n. 6.229/2005, que inicialmente propunha apenas a inclusão dos créditos tributários na recuperação judicial. Durante a tramitação legislativa, em que demais projetos foram a este anexados, a proposta foi amplamente modificada para abarcar outras alterações relevantes.

Mais recentemente, fruto do trabalho de um grupo de especialistas nomeado pelo Poder Executivo, um Anteprojeto de modernização completa foi apresentado ao Congresso, recebido como PL n. 10.220/2018. Mesmo sendo o projeto maior, foi apensado ao PL n.6.229/2005 para tramitação conjunta. Também acabou sendo anexado ao PL n. 6.229/2005 o projeto de medidas emergenciais decorrentes da pandemia do coronavírus, de n. 1397/2020.

Na sessão de 26 de agosto de 2020, o PL n. 6.229/2005 veio a ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Remetido ao Senado em 02 de setembro de 2020,nessa Casa tramitousob o n. 4.458/2020, e veio a ser aprovado na sessão de 25 de novembro de 2020.

O texto aprovado no Congresso traz uma série de atualizações e alterações relevantes para a Lei n. 11.101/2005, adaptando-a ainda, ao cenário de calamidade pública da pandemia de coronavírus.

Dentre as inovações, destacam-se as seguintes: (i) incentivo à concessão de crédito para a empresa em recuperação; (ii) incentivo à mediação e conciliação pré-processual entre o devedor e os credores; (iii) descontos e prazos maiores para parcelamento de débitos tributários com a União; (iv) possibilidade de ser apresentado plano de recuperação pelos credores, em caso de rejeição do plano indicado pelo devedor; (v) detalhamento sobre a suspensão das ações, inclusive quanto a créditos não sujeitos ao concurso;e, no que é mais relevante para este trabalho,(vi)a possibilidade da pessoa física que exerça atividade rural requerer sua recuperação judicial.

Segundo o art. 1º da Lei n. 11.101/2005, o instituto é aplicável a empresários, e somente a empresários. Ficam de fora do regime da recuperação judicial, portanto, pessoas naturais e jurídicas que não sejam constituídas na forma empresarial, como associações, fundações, instituições religiosas. Há, de fato, uma corrente doutrinária que sustenta a abrangência do regime a qualquer “agente econômico”, mas o aprofundamento nesse assunto escapa dos limites deste estudo, centrado no produtor rural.

Além da empresariedade, como requisito adicional, o art. 48 exige que o devedor, “no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de dois anos”. Quanto aos empresários comuns, a questão é simples: se o empresário for regularmente registrado há pelo menos dois anos, poderá ter acesso à recuperação judicial.

Contudo, para o produtor rural, a interpretaçãodessa regra é bem controvertida.A questão é: caso o produtor rural migre para o regime empresarial menos de dois anos antes do pedido de recuperação judicial, preenche o requisito? Em outras palavras: o tempo de atividade antes do registro empresarial é contabilizado para fins dos dois anos de regularidade?

A peculiaridade é que o produtor rural tem o direito de escolher o seu regime legal, se civil ou empresarial. Caso opte pelo regime empresarial, a partir da inscrição adequada, o produtor rural fica “equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro” (art. 971 do Código Civil). Estando dessa forma equiparado à empresário, passa ter irrestrito acesso ao sistema de tratamento da insolvência empresarial, de modo que, está sujeito à falência e pode pedir recuperação judicial.

Foi neste sentido que decidiua Quarta Turma do STJno caso J. Pupin (REsp nº 1.800.032/MT) e, posteriormente, também a Terceira Turma, no caso do Grupo Nicoli (REsp nº 1.811.953/MT).

Para sanar essa omissão e trazer mais segurança jurídica à questão, oprojeto e lei aprovado incluiu finalmente a possibilidade expressa de o produtor rural pessoa física requerer a sua recuperação judicial, fazendo com que o artigo 48 da Lei n. 11.101/2005 passe a contar com o § 3º, regrando a documentação a ser apresentada pelo produtor rural pessoa física acessar o regime recuperacional.

Com efeito, por inclusão da Lei n. 12.873/2013, o artigo 48, § 2º, da Lei n. 11.101/05, já regrava a documentação a ser apresentada pelo produtor rural pessoa jurídica. Este dispositivo veio a ser adequado com o PL n. 6.229/2005, que alterou a forma de comprovação da atividade rural para a sociedade produtora rural.

O elemento mais inovador, portanto, é mesmo o regramento da recuperação judicial do produtor rural pessoa física. Ao dispor que o produtor rural pessoa física pode comprovar o biênio de atividade regular com “Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial”, o dispositivo legal proposto parece mesmo admitir a recuperação judicial do produtor pessoa natural. Em complemento, como o caput do artigo 48 exige regularidade da atividade, coerentemente o § 3º impõe que a documentação seja tempestiva.

Assim, embora não com tanta clareza e mesmo que de modo oblíquo, o PL n. 6.229/2005 parece mesmo sugerir a admissibilidade da recuperação judicial do produtor rural independentemente de ser empresário por pelo menos dois anos anteriores ao pedido. Caberá a jurisprudência sinalizar se esta é mesmo a interpretação mais adequada do novo dispositivo legal.

Se a jurisprudência do STJ respeitar o compromisso de se manter “estável, íntegra e coerente”, imposto do artigo 926 do Código de Processo Civil, não haverá surpresas e o acesso do produtor rural a recuperação judicial estará cada vez mais legitimado.

Por outro lado, e de certa forma limitando a vantagem que o produtor rural poderia alcançar com a recuperação judicial,o PL n. 6.229/2005 restringe os créditos sujeitos ao concurso. A inovação está na inclusão do § 6º ao artigo 49, da Lei n. 11.101/2005 dispondo que os créditos sujeitos à recuperação judicial são apenas os que constarem na contabilidade do devedor. A novidade é curiosa porque para todos os demais agentes econômicos – indústria, comércio, serviços – mesmo créditos não contabilizados acabam por se sujeitar a recuperação judicial.

Há ainda outra restrição, prevista no § 7º: ficam de fora da recuperação judicial os créditos decorrentes de “recursoscontrolados e abrangidos nos termos dos arts. 14 e 21 da Lei n. 4.829, de 5 de novembro de 1965”.Referida lei trata créditos voltados ao fomento da atividade rural, disciplinado por instruções do conselho monetário nacional. Caso venha o produtor rural a renegociar os créditos de fomento em algum momento do contrato, as obrigações passam então a ficar sujeitas a recuperação judicial.

Além de alterar a Lei n. 11.101/2005, o PL n. 6.229/2005 também promove inovações na Lei n. 8.929/1994 que dispõe sobre a cédula de produto rural (CPR). A CPR é um título de crédito que representa uma promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia (art. 1º, Lei n. 8.929/1994), funcionando como um facilitador na produção e comercialização rural, sendo de suma importância para o crescimento e desenvolvimento do setor agrícola brasileiro.

Atualmente, na Lei n. 11.101/2005, os créditos representados pela CPR estão sujeitos a recuperação judicial: se forem garantidos por penhor agrícola ou hipoteca, submetem-se a classe II por tratarem de garantias reais ao cumprimento da obrigação (artigo 1.419, Código Civil); caso não tenham garantias atreladas, representam créditos quirografários, a serem incluídos na classe III. Somente são excluídos os créditos da CPR caso forem garantidos por alienação fiduciária, não em razão da CPR, mas porque a garantia fiduciária nunca se submete à recuperação judicial conforme previsto no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei n. 11.101/2005.

Com as mudanças propostas pelo PL n. 6.229/2005, as obrigações previstas na CPR, independentemente da garantia oferecida, não se sujeitariam a recuperação judicial do produtor rural. São duas as modalidades de operações que levam a emissão da CPR: (i) o fornecimento de insumos para viabilizar a atividade em permuta do produto agrícola (operação de “barter”); e, (ii) a antecipação de venda do produto futuro. Em ambas as modalidades, o crédito está excluído do concurso recuperacional.

Por fim, ficam igualmente excluídos da Recuperação Judicial os créditos relativos à dívida constituída nos últimos três anos anteriores ao pedido de recuperação com finalidade de aquisição de propriedade rural.

A impressão que fica é que o projeto legislativo de um lado aceitou a recuperação judicial do produtor rural, mas de outro esvaziou o instituto; “deu com uma mão, mas tirou com outra”. Os créditos mais volumosos, relevantes e recorrentes para a atividade rural ficarão excluídos do concurso, de modo que os credores poderão autonomamente exercer seu direito de crédito, com a livre execução ou a busca e apreensão dos bens objeto de alienação fiduciária, ressalvadas as limitações quanto aos bens essenciais e ao stayperiod.

No mais, outra novidade para o produtor ruralé a possibilidade de apresentação de plano especial, que na Lei n. 11.101/2005 é prerrogativa exclusiva de microempresas e empresas de pequeno porte. A alteração se dará com a inclusão do artigo 70-A. Nesse caso, para que o devedor possa apresentar o plano especial, o valor da causa (que representa o montante do crédito sujeito a recuperação judicial) não poderá exceder R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).

Concluímos, assim, que as alterações trazidas pelo PL n. 6.229/2005 à Lei n. 11.101/2005 poderão trazer mais segurança jurídica quanto a possibilidade de o produtor rural requerer sua recuperação judicial, mas as mudanças quanto aos créditos que estrão sujeitos ou não ao regime recuperacional, coloca em xeque a real possibilidade de a recuperação judicial ser apta à superação da crise e à preservação da atividade e de sua função social.

Geraldo Fonseca de Barros Neto – Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da PUC-Campinas. Coordenador da Especialização da PUC-Campinas. Professor convidado na pós-graduação da PUC-SP, da PUC-Rio e da UFMT. Sócio do FVA | Fonseca Vannucci Abreu Advogados.

Lizah E. Geld Ribeiro – Estudante de Direito do 5º ano da PUC-Campinas. Estagiária do Finocchio e Ustra na área de Recuperação Judicial e Falência. Membro do Grupo de Estudos de Insolvência Empresarial da PUC-Campinas (GE-Insol).

 

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