O fim das restituições em dinheiro e as alterações na ordem de prioridades na falência

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  • Autor: Cássio Cavalli – 

Uma das mais relevantes e, ao mesmo tempo, menos notadas alterações da Lei 11.101/2005 (“LRF”) levadas a cabo pela Lei 14.112/2020 foi a extinção das hipóteses de pedido de restituição em dinheiro previstas no art. 86 da LRF.

O pedido de restituição em dinheiro constituía norma disfuncional no sistema de direito concursal brasileiro, pois conferia pretensão restitutória a quem era mero credor com o propósito de assegurar prioridade concursal sobre a garantia patrimonial geral do devedor.

Para compreender por que a restituição em dinheiro constituía previsão disfuncional no direito concursal, deve-se compreender as diferentes técnicas jurídicas utilizadas por normas que regem as pretensões sobre bens que integram o patrimônio do devedor (tanto a garantia patrimonial geral quanto os bens segregados por direitos reais de garantia) e sobre bens que não integram o patrimônio do devedor. A compreensão do papel da pretensão restitutória traz consigo um interessante convite para explorar as diferentes normas que regem os concursos de credores.

A pretensão restitutória é exercida sobre um bem determinado que não integra o patrimônio do devedor. Por contraste, as pretensões de credores gerais e de credores com garantia real são exercidas sobre bens que integram o patrimônio do devedor. A função típica do pedido de restituição é retirar da massa bem arrecadado que não era de titularidade do falido. Por isso, a pretensão restitutória serve para que titular de bem arrecadado possa reavê-lo, de modo a evitar que este bem responda juntamente com os demais bens do devedor pela satisfação dos credores em concurso. Afinal, a regra da responsabilidade patrimonial, segundo a qual o devedor responde pelas suas obrigações com todos os seus bens presentes e futuros, segue inalterada na falência e na recuperação. Os bens de terceiros não integram o concurso e, portanto, não devem compor a massa objetiva. Por conseguinte, os bens que não são do devedor não devem responder pelas obrigações do devedor falido, mas devem ser restituídos a seus titulares. Daí porque o ajuizamento do pedido de restituição suspende a disponibilidade da coisa pela massa insolvencial (art. 91 da LRF). Por ser exercida sobre um bem individuado, o pedido de restituição deve ser fundamentado com a prova da titularidade do bem e deve descrever o bem a ser restituído, conforme dispõe o art. 87 da LRF. Com efeito, a pretensão restitutória tutela situações jurídicas exercidas sobre bens determinados de titularidade de terceiros e não sobre a totalidade dos bens do devedor que compõem a massa objetiva.

Já as pretensões de credores gerais do devedor insolvente são exercidas sobre a garantia patrimonial geral do devedor, isto é, sobre seus bens e direitos que integram a massa objetiva. (É interessante notar que na tradição do direito continental europeu é corrente a utilização da categoria garantia patrimonial geral, embora se utilize menos a categoria correlata de credor geral, – os general creditors do direito inglês e norte-americano. O que importa é que os credores gerais são aqueles cujas pretensões se exercem sobre a garantia patrimonial geral do devedor.) Por isso, diz-se que estes credores concorrem pelos bens do devedor, de acordo com normas concursais que versam sobre a excussão do patrimônio do devedor e a distribuição dos valores obtidos aos credores gerais, conforme as suas respectivas prioridades de pagamento.

Contrariamente à compreensão vulgar, as normas de prioridade de pagamento não versam apenas sobre uma ordem de pagamento de credores. Se há prioridade, deve se indicar sobre qual conjunto de bens se exerce a prioridade. As prioridades se exercem sobre a garantia patrimonial geral do devedor ou sobre outros subconjuntos patrimoniais segregados no interior do patrimônio do devedor. Por isso, é falha a técnica legislativa de apenas listar quem recebe antes e quem recebe depois, utilizada, por exemplo, nos arts. 85, 84 e 83 da LRF, sem explicitar por outras normas os diferentes conjuntos de bens sobre os quais as prioridades são exercidas.

Comecemos pelas normas que regem o concurso com relação aos bens com compõem a garantia patrimonial geral do devedor. Consoante o entendimento doutrinário unânime, a norma da par condicio creditorum rege o concurso entre credores simples (expressão empregada pelo direito brasileiro, – vide, p. ex., o art. 961 do CC, – e que prefiro utilizar para designar credores quirografários) pela garantia patrimonial geral do devedor. Neste sentido, diz-se que, em situações de concurso universal, a norma da par condicio creditorum excepciona e substitui a norma da anterioridade do pagamento (prior in tempore potior in iure), de que é espécie a norma da anterioridade da penhora (art. 908, §2º, do CPC). A norma da par condicio creditorum prevê o pagamento pro rata credores concursais; isto é, recebem da garantia patrimonial geral do devedor um quinhão proporcional ao valor de seu crédito. Enquanto descrição geral, a assertiva está correta. Porém, mesmo em caso de concurso universal também se manifestam outras normas de prioridade baseadas na anterioridade. Na falência, por exemplo, os credores que não habilitarem seu crédito tempestivamente perdem o direito a participar dos rateios parciais (art. 10, § 3º, da LRF). (Aqui, cabe a reflexão sobre se esta mesmíssima norma não deveria ser aplicada à recuperação judicial. Desde já, sem declinar os fundamentos, antecipo que a mim parece que sim.) Logo, somente os credores que habilitarem tempestivamente seu crédito participam do concurso pro rata e, portanto, ficam excluídos do concurso os credores retardatários. Observe-se que se algum ou alguns credores acessarem a garantia patrimonial geral e forem satisfeitos, aqueles que dormirem no ponto terão perdido a oportunidade de serem pagos. Portanto, a norma da anterioridade manifesta-se inclusive em circunstâncias nas quais se aplica predominantemente a par condicio creditorum.

Assim como o direito não socorre aos que dormem, por vezes o direito pode conferir vantagens para que certos credores possam se servir antes dos bens integrantes da garantia patrimonial geral. É nesse sentido que se manifestam os privilégios creditórios, suprimidos do art. 83 da LRF em razão de um mal conduzido processo legislativo de elaboração da Lei 14.112/2020. (A supressão dos privilégios foi esboçada na primeira etapa dos trabalhos de reforma da LRF feita no primeiro grupo de trabalho do Ministério da Fazenda, do qual eu era integrante, que teve apenas um mês para elaborar um primeiro esboço de anteprojeto, razão pela qual várias alterações ou detalhamentos ficaram para depois. A burocracia ministerial, no entanto, preferiu assumir os trabalhos após este primeiro esboço, razão pela qual ficaram, na Lei 14.112/2020, inúmeras disposições inacabadas e desconexas. Esta história, conquanto mereça ser contada, deixarei para contar noutra oportunidade. Aqui importa apenas anotar que ela resultou na supressão dos privilégios creditórios e privou a LRF de importantíssima técnica de organização do concurso.) Fiquemos, aqui, com os privilégios gerais, que são aqueles que se exercem sobre a garantia patrimonial geral do devedor. Os credores simples gerais e os credores com privilégio geral podem se servir dos valores obtidos com a excussão dos bens que integram o patrimônio do devedor; isto é, servem-se da mesma cumbuca de bens. Porém, ante a norma de prioridade, os credores com privilégio geral podem se servir dos bens integrantes desta cumbuca antes dos credores simples. Caso raspem o tacho (rectius, esgotem a garantia patrimonial geral), nada sobrará para os credores simples.

Conceitualmente, os créditos extraconcursais, enquanto despesas de administração do concurso, deveriam constituir uma espécie de super-privilégio geral, pagos com precedência sobre os demais credores gerais com base nos valores obtidos pela excussão da garantia patrimonial geral do devedor. Dentre estes valores não se incluem (ou não deveriam ser incluídos) os valores de bens segregados intra ou extrapatrimonialmente por direitos reais de garantia, patrimônios de afetação etc. No direito comparado, por exemplo, é assim que o § 503 do Bankruptcy Code norte-americano disciplina a prioridade das despesas administrativas do concurso: como um super-privilégio geral exercido sobre a garantia patrimonial geral do devedor.

Por vezes, ao invés de assegurar prioridade de acesso à garantia patrimonial geral do devedor, o direito segrega determinados bens do patrimônio do devedor e restringe o acesso a estes bens (rectius, ao valor de excussão destes bens) a determinados credores. É o quanto ocorre, por exemplo, com os direitos reais de garantia, que segregam bens determinados (rectius, individuados) dentro do patrimônio do devedor, de modo a conferir ao credor com garantia real uma prioridade de pagamento sobre o valor de excussão do bem onerado (art. 1.419 do CC). Eu denomino estas hipóteses de segregação intrapatrimonial. Os credores gerais do devedor não podem acessar o valor do bem segregado em garantia real e recebem apenas o que sobrar do valor de excussão do bem após satisfeito o credor com garantia real. O mesmo raciocínio se aplica a outras técnicas de segregação intrapatrimonial, de que é exemplo o patrimônio de afetação (cf. art. 119, IX, da LRF, que fala que no patrimônio de afetação os “bens, direitos e obrigações [ficam] separados dos do falido […] até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.”).

As normas que permitem a certos credores gerais que também possam acessar o valor obtido com a excussão do bem onerado em garantia real em paridade de tratamento ou até mesmo com prioridade sobre o credor garantido, como a norma encontrada no art. 186 do CTN, enfraquecem a segregação de bens realizada por garantias reais, ao mesmo tempo que criam um novo concurso de credores sobre os bens segregados em garantia real. Estas normas enfraquecem a técnica de segregação de ativos e, por isso, desprestigiam certas formas de organização do financiamento e da organização da empresa, – como, por exemplo, os institutos do penhor e da hipoteca, – e impulsionam a busca por outras formas mais efetivas de segregação, como o patrimônio de afetação e as diversas formas que pode assumir a propriedade em garantia, – como, p. ex., a alienação em garantia, a securitização de ativos e o leasing financeiro, – conforme pode ver-se nos dados oficiais sobre a acentuadíssima redução na utilização do penhor e da hipoteca nos últimos vinte anos, acompanhada pelo vertiginoso crescimento da utilização da alienação da propriedade em garantia. (O fenômeno do declínio dos direitos reais de garantia não se restringe à jurisdição brasileira, conforme pode ver-se no substancial artigo de Raghuram Rajan et aliiThe decline of secured debt. National Bureau of Economic Research, 2020.) Como resultado prático, o concurso que se exercia sobre a garantia patrimonial geral desloca-se um nível acima, para o bem (ou bens) segregados por garantia real ou outro modo. À medida que este novo concurso congestiona-se, o movimento tende a repetir-se, pela afirmação de novas técnicas de segregação, e assim sucessivamente.

Porém, a busca pelo acesso prioritário a bens segregados não se dá apenas por novas técnicas de segregação que subtraem bens da garantia patrimonial geral do devedor. Dá-se, também, pela asseguração de acesso com anterioridade sobre o valor de excussão dos bens que integram a garantia patrimonial geral do devedor, de que são bons exemplos as safe harbors atualmente previstas nos arts. 193, 193-A e 194 da LRF (sobre o tema, remeto à primorosa dissertação de Ricardo Mourão, Vencimento antecipado e compensação de contratos derivativos na recuperação judicial: o tratamento dos derivativos de balcão na Lei de Recuperação e Falências, aprovada com louvor no Mestrado em Direito da Fundação Getulio Vargas). Era isto o quanto faziam as revogadas hipóteses de restituição em dinheiro na Lei 11.101/2005.

Cumpre decompor a análise da pretensão restitutória em dinheiro, a começar pela hipótese do art. 86, I, da LRF, que autorizava a restituição em dinheiro caso “a coisa [de propriedade de terceiro, que tenha sido arrecadada pela massa] não mais existir ao tempo do pedido de restituição, hipótese em que o requerente receberá o valor da avaliação do bem, ou, no caso de ter ocorrido sua venda, o respectivo preço”. Esta norma pode ser enunciada da seguinte forma. O terceiro titular de bem arrecadado pela massa insolvencial pode pedir a restituição do bem, para impedir que este seja alienado para pagar as dívidas do devedor insolvente. Porém, caso este bem arrecadado tenha sido alienado pela massa, ao invés de tornar a alienação ineficaz perante seu terceiro titular, o que permitiria reivindicá-lo ao novo adquirente (com prejuízo para a efetividade e segurança das alienações feitas no procedimento concursal), entendeu-se ser melhor assegurar que o titular da pretensão restitutória possa ser satisfeito com o valor equivalente do bem, acessando o dinheiro contido no caixa da massa insolvencial com prioridade sobre qualquer outro credor. Veja-se que, nesta hipótese, desloca-se o alvo da pretensão restitutória do bem em si para o caixa comum da massa insolvencial (vale dizer, para conjunto de recursos que servirão para pagar os credores concursais), e atribui-se prioridade de pagamento ao titular da pretensão restitutória, determinando-se o pagamento do valor assim que houver dinheiro disponível em caixa. (Tal solução orienta-se por uma noção de justiça pela qual deva ser pago prioritariamente o proprietário de bem que não deveria responder pelas dívidas do falido mas que fora alienado pela massa. Note-se, porém, que esta é uma noção de justiça válida, mas que não infirma outra noção de justiça concorrente e que poderia ter sido a opção do legislador, segundo a qual o proprietário do bem alienado pela massa não deveria ter prioridade de receber em dinheiro por não ter sido suficientemente diligente, isto é, pelo fato de que o direito não deve socorrer aos que dormem.)

Ao deslocar-se a pretensão restitutória exercida sobre um bem determinado para o caixa comum da massa insolvencial, o pedido de restituição passa a ser uma pretensão creditícia, pois se exerce sobre todos os bens do devedor, dotada de um privilégio creditório sobre os demais credores. Trata-se de um típico privilégio geral, por ser exercido sobre o dinheiro obtido pela excussão de qualquer dos bens em geral do devedor. Para assegurar-se este privilégio, é necessário que haja dinheiro em caixa e que o credor possa receber imediatamente, antes de ser pago qualquer outro credor do falido ou qualquer outra despesa da massa.

Com efeito, se o titular da pretensão restitutória em dinheiro chegar antes de serem pagos os credores concursais, quando ainda há caixa, será pago. Porém, se chegar tardiamente, após o pagamento de credores concursais, não receberá. Esta é a típica descrição de uma posição de direito subjetivo de crédito em pecúnia, que se beneficia de prioridade de pagamento por anterioridade típica de crédito com privilégio geral.

Nesse sentido, a venda ou deterioração da coisa arrecadada transmuta a pretensão restitutória em um privilégio creditório geral, assegurado pela anterioridade de exercício sobre os recursos que integral a garantia patrimonial geral do devedor falido. Por contraste, isto significa que os recursos obtidos em razão da excussão de bens segregados do patrimônio geral (como, p. ex., os bens onerados em garantia real) não poderão integrarão a massa de valores que podem ser utilizados para satisfazer a pretensão de “restituição em dinheiro”, ainda que esses valores transitem pelo caixa da massa, pois tratam-se de recursos segregados (cf., p. ex., o art. 119, IX, e os arts. 108, § 5º, c/c 83, § 1º, da LRF).

Porém, na reforma da LRF, a pretensão restitutória em dinheiro foi classificada como crédito extraconcursal (art. 84, I-C, da LRF), o que, a rigor, não é, pois, conceitualmente, a pretensão restitutória em dinheiro constitui um privilégio geral de pagamento sobre os recursos da massa alimentados pelos bens integrantes do patrimônio geral do devedor (o que exclui, portanto, os bens segregados em outros subconjuntos). Nesse sentido, ante a segregação dos recursos decorrentes da excussão de bens onerados em garantia, a classificação como crédito extraconcursal equivale funcionalmente a um super-privilégio creditório geral.

A hipótese de restituição de tributos passíveis de retenção na fonte, de descontos de terceiros ou de sub-rogação e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos contida no art. 86, IV, da LRF, constitui uma espécie análoga à da previsão da restituição em dinheiro de coisas vendidas ou deterioradas de que trata o art. 86, I, da LRF. Os valores recebidos por agente arrecadador podem ser mantidos em conta segregada dos demais bens e recursos financeiros, do devedor. Neste caso, a Fazenda Pública será titular de um direito à restituição de um bem que é individualizado e segregado do patrimônio geral do devedor, e a pretensão restitutória é exercida sobre o bem que é a conta que mantém a pecúnia, e não a pecúnia em si. Por este expediente se logra segregar recursos financeiros fungíveis por natureza. Os mecanismos de segregação de bem no interior do patrimônio do devedor devem individuar e distinguir o bem dos demais bens que integram a garantia patrimonial geral do devedor. Do contrário, transmite-se a propriedade do bem, que passa a integrar o patrimônio geral do devedor. É nesse sentido, por exemplo, que em negócios de disposição do uso de coisa fungível há a transmissão da propriedade, como ocorre, por exemplo, no contrato de mútuo que, enquanto empréstimo de coisas fungíveis (art. 586 do CC), transmite a propriedade da coisa mutuada ao mutuário (art. 587 do CC), e atribui ao mutuante um direito subjetivo de crédito contra o mutuário. De modo análogo com relação ao depósito de coisas fungíveis (vide o art. 645 do CC, no qual se lê: “O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo.”). Caso se queira segregar o bem, de modo a conservar-se a sua propriedade e as ações reivindicatórias, deve-se individuá-lo e infungibilizá-lo, o que muitas vezes é feito colocando o bem em um recipiente infungibilizado (p. ex., o silo tal que contém os grãos ou a conta número tal que contém o numerário) e a pretensão se exerce sobre o recipiente. Com efeito, caso o dinheiro retido ou descontado seja mantido no caixa geral do devedor, a Fazenda não tem como exercer pretensão restitutória sobre o dinheiro não individuado. Neste caso, a Fazenda possui uma pretensão creditícia dotada de um privilégio geral anabolizado, pois classificado como crédito extraconcursal pelo art. 84, I-C, da LRF. Corrobora esta conclusão do fato de que a cobrança dos valores de tributos retidos na fonte é feita mediante execução fiscal, na qual serão penhorados tantos bens quantos bastem à integral satisfação do crédito; e não mediante ação reivindicatória ou possessória de coisa determinada.

Esta interpretação, aliás, é a que talvez melhor se coadune com o texto expresso do art. 186, parágrafo único, I, do CTN, conforme a redação que lhe deu a Lei Complementar 118/2005, o qual dispõe que, na falência, “o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais ou às importâncias passíveis de restituição, nos termos da lei falimentar, nem aos créditos com garantia real, no limite do valor do bem gravado”. Vale dizer, nos termos do Código Tributário Nacional, a classificação máxima que pode ser outorgada a crédito tributário é imediatamente abaixo dos créditos extraconcursais, pois “o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais”. Sublinhe-se que o CTN não prevê nenhuma outra exceção a autorizar uma maior classificação do crédito tributário. Com efeito, o crédito pelos tributos retidos na fonte e demais hipóteses do inciso IV do art. 86 da LRF devem ser classificados como créditos dotados de um super-privilégio geral denominado de extraconcursal pelo art. 84, I-C, da LRF.

A hipótese de restituição em dinheiro do adiantamento do contrato de câmbio (“ACC”) contida no art. 86, II, da LRF e no art. 75, § 3º, da Lei 4.728/1965, também deve ser mais bem compreendida. Sobre o tema, já havia registrado algumas reflexões em artigo intitulado “O novo tratamento do ACC na falência e na recuperação judicial” aqui no Agenda Recuperacional.

Na reforma da LRF, eu propus a lápis que a pretensão de restituição em dinheiro fosse reclassificada para o nível de crédito com privilégio geral, ao mesmo tempo em que os créditos garantidos por direitos reais de garantia e por alienação fiduciária fossem dotados de prioridade absoluta sobre todos os demais credores. Assim, a pretensão creditícia do ACC seria tratada como um crédito dotado de privilégio geral e, ao mesmo tempo, seria possível constituir uma alienação do recebível cambial cujo valor fora antecipado, sobre a qual o financiador teria prioridade absoluta. Desse modo, havendo operação de exportação e contrato de câmbio, a instituição que antecipasse o valor do câmbio teria em garantia a propriedade do câmbio, e nenhum outro credor poderia exercer sua pretensão sobre este valor. Este era, a meu ver, o verdadeiro significado do art. 75, § 3º, da Lei 4.728/1965: atribuir à instituição financiadora uma posição de propriedade sobre o recebível cambial e tutelá-la por uma ação restitutória. Evidentemente, o crédito do financiador que excedesse o recebível cambial seria tratado como crédito dotado de um super-privilégio geral. Esta proposta não foi integralmente mantida, nem os integrantes do grupo de trabalho que elaborou o primeiro esboço de anteprojeto tiveram a oportunidade de explicar essa ideia em uma exposição de motivos. Como resultado, a reforma da LRF acabou por não refletir estas ideias, embora tenha ficado o art. 84, I-C, que rebaixou a classificação do crédito por ACC. Entretanto, a ideia que expus acima ainda pode ser facilmente alcançada na prática bancária. Para tanto, basta pactuar-se junto com o ACC a cessão fiduciária do recebível cambial à instituição financeira. Desse modo, até o valor do recebível cambial, o financiador terá prioridade absoluta de recebimento do seu crédito, a qual poderá tutelar inclusive pelo manejo de típico pedido de restituição regido pelo art. 85 da LRF. Caso o recebível cambial não tenha sido gerado ou, gerado, tenha perecido, não haverá mais bem determinado sobre o qual se exerceria a pretensão restitutória. Por fim, o valor do crédito que exceder o recebível cambial será desprovido de pretensão restitutória e será classificado como um super-privilégio geral a que o art. 84, I-C, da LRF, denomina extraconcursal.

Levo a público estas breves reflexões com o propósito de chamar a atenção dos juristas para a importância de incluirmos as prioridades creditórias no debate acerca das recentes transformações do direito concursal brasileiro.

Cássio Cavalli. é Professor da FGV Direito SP, Advogado, árbitro e parecerista.

 

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