A extensão dos efeitos da Falência aos sócios de Sociedades Limitadas e a desconsideração da Personalidade Jurídica

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Ana Julia Morgado – 

Os primeiros dispositivos legais que dispuseram sobre o direito falimentar no Brasil, – Lei n° 2.024/1.908 e Decreto-Lei n° 5.746/1.929 – previam que a falência afetaria todos os sócios de forma pessoal e solidária pelas obrigações da falida.

 

O posicionamento anteriormente adotado pelos legisladores fora deveras criticado, uma vez que os atos praticados pela pessoa jurídica da sociedade não poderiam ser absolutamente confundidos com aqueles praticados pela pessoa física de seus sócios, de maneira que apenas os bens dos sócios deveriam ser alcançados, e não a pessoa do sócio em si.

 

Em razão das críticas recebidas, o entendimento legislativo foi alterado, através do Decreto-Lei n° 7.661/1.945, mais especificamente por seus artigos 5°, caput e parágrafo único, e 6°[1], passando a ser vedada a decretação da falência dos sócios da empresa limitada, mantendo, no entanto, os efeitos da falência sobre eles, que teriam seus bens arrecadados à liquidação da massa falida.

 

A responsabilidade entre os sócios e a empresa de responsabilidade limitada falida passou, assim, a ser subsidiária, e não mais solidária, de maneira que os bens dos sócios só seriam alcançados à medida que a massa falida não tivesse mais condições de cumprir com suas obrigações.

 

Tem-se, ainda, que o entendimento acima se restringia apenas às empresas de responsabilidade limitada, sendo que, no que tange às de responsabilidade ilimitada, os sócios poderiam – e ainda podem – ter os efeitos da falência estendidos diretamente a eles.

 

Posteriormente, a Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência), manteve o posicionamento de que seria possível estender os efeitos da falência aos sócios das empresas de responsabilidade limitada, no entanto, acrescentou que isso só seria possível quando presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, em caso de abuso de personalidade jurídica caracterizada por desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

 

É importante destacar que, entre uma legislação e outra, no ano 2002, passou a vigorar o novo Código Civil, que previu pela primeira vez o incidente da desconsideração da personalidade jurídica.

 

O referido remédio jurídico, previsto no artigo 50, do Código Civil, tem a finalidade de reprimir fraudes contra credores de empresas de responsabilidade limitada que escondem os bens da empresa atrás do patrimônio pessoal de seus sócios e administradores, razão pela qual a referida medida passou a ter previsão na Lei de Recuperação e Falência.

 

“Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”

 

Neste sentido, o artigo traz um detalhe importante ao prever que “[…] determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios […]”. Nota-se que o ditame legal supramencionado limitou a desconsideração da personalidade jurídica aos bens dos sócios ou administradores da empresa, o que significa que a pessoa física destes não é afetada de nenhuma maneira.

 

Assim, a Lei 11.101/2005 inaugurou o entendimento de que a extensão dos efeitos da falência aos sócios das empresas de responsabilidade limitada deveria ser uma medida excepcional, considerando todas as implicações que levar o status de falido implicaria ao sócio, tanto em sua vida profissional, como pessoal.

 

Ainda, previu expressamente que a extensão ocorreria por meio da desconsideração da personalidade jurídica, como uma maneira de alcançar somente os bens do sócio, e não a sua pessoa física como um todo, preservando sua moral e dignidade, atendendo à proteção constitucional prevista nos artigos 1°, III, e 5°, X, ambos da Constituição Federal.

 

A respeito das consequências exclusivamente patrimoniais da extensão dos efeitos da falência aos sócios através da desconsideração da personalidade jurídica, no ano de 2008, se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo, pelo voto do E. Desembargador Eliior Akel, ao julgar um pedido de extensão da falência à pessoa natural de Edemar Cid Ferreira, na falência do Banco Santos S/A, nos seguintes termos:

 

“Conforme já afirmei, em julgamento desta Corte, quando ainda integrava a então Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, “uma coisa é a desconsideração da personalidade jurídica para submissão dos bens dos sócios à satisfação de uma obrigação, em se divisando abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), vale dizer, a extensão, a essas pessoas, das repercussões patrimoniais da quebra. Outra, diversa, é a extensão da própria falência aos sócios, ao controlador, ou a outras empresas coligadas”. “(…) Em qualquer hipótese de propositura de ação de responsabilização, de desconsideração da personalidade jurídica e de extensão da falência, a sua eventual procedência só pode ter consequências patrimoniais, ou seja, sujeitando os bens do sócio, controlador ou administrador ao pagamento das obrigações sociais, mas não o sujeitando à condição de falido”

(Agravo de Instrumento nºs 521.791.4/2 e 553.068.4/2, Rel. Romeu Ricupero, j. 27.8.2008)

 

O incidente, por sua vez, poderá ser instaurado de ofício pelo magistrado, a requerimento de um credor lesado pelo comprovado abuso de personalidade jurídica, ou a requerimento do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, nos termos dos artigos 82-A, da Lei 11.101, 50, do Código Civil, e 133 e s.s., do CPC.

 

No entanto, a instauração da desconsideração por ofício do magistrado é um tema debatido entre os doutrinadores, uma vez que muitos entendem que o rompimento da autonomia da personalidade jurídica só deve ocorrer mediante requerimento da parte lesada ou do Ministério Público, considerando que se trata de interesse particular do credor.

 

Neste sentido, se manifesta o Ilustre doutrinador, Marcelo Barbosa Sacramone[2]:

 

“O requerimento da parte ou do Ministério Público para a instauração, entretanto, deve ser interpretado como imprescindível, em detrimento do texto legal. Isso porque se trata de interesse particular do credor, que pode renunciar ao seu direito de crédito. Outrossim, não há desconsideração para a satisfação da Massa Falida, o que justificaria a intervenção de ofício do Juízo diante da proteção da coletividade de credores, porque essa poderia ingressar com ação de responsabilização diretamente, sem que nada fosse desconsiderado.”

 

Nos dias de hoje, com o advento da Lei n° 14.112/2020, alterou-se novamente o entendimento concernente à extensão da falência – e de seus efeitos – aos sócios das empresas de responsabilidade limitada, que restaram expressamente vedados, ao mesmo tempo que se admitiu a desconsideração da personalidade jurídica para fins de responsabilidade subsidiária de terceiros, grupo, sócio ou administrador pela obrigação:

 

“ Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar […]”

 

Ou seja, passou a ser vedada a extensão da falência – bem como seus efeitos – aos sócios das empresas de responsabilidade limitada, mas, no intuito de coibir fraudes e sanar a obrigação da falida, o legislador permitiu que os bens de terceiros fossem atingidos através da desconsideração da personalidade jurídica, desde que comprovados os requisitos presentes no artigo 50, do Código Civil.

 

Isto porque a desconsideração da personalidade jurídica tem como escopo unicamente a satisfação da obrigação, enquanto a extensão da falência traz aos sócios efeitos que vão além dela, como o status de falido, afetando a esfera personalíssima daquele que o recebe.

 

Mas é importante destacar que a desconsideração da personalidade jurídica na falência é uma medida excepcionalíssima. Sua natureza especial se dá em razão do princípio da preservação da atividade econômica, bem como para prevenir a insegurança jurídica que romper indiscriminadamente a autonomia da personalidade jurídica traria.

 

Assim se manifestou Daniel Carnio Costa[3]:

 

“Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser excepcional. Em respeito a isso, a inclusão desse artigo pela reforma legislativa da Lei falimentar prevê que “é vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida”. Se assim não fosse, não haveria pessoas dispostas a empreender, ou a assumir cargos de gestão de empresas ou até mesmo investir na atividade econômica e na geração de empregos e riqueza.

[…]

Claramente a intenção do legislador é dificultar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida em casos que não estejam evidentes o cumprimento dos requisitos legais.”

 

É perceptível que o ordenamento jurídico brasileiro está evoluindo no sentido de buscar um equilíbrio entre a necessidade de satisfazer a obrigação da empresa de responsabilidade limitada falida, e a necessidade de preservar a dignidade, imagem e moral da pessoa física de seus sócios, que não podem mais ter o status de falido, nem ter os efeitos da falência estendidos a eles, apenas aos seus bens, e em situações excepcionais, mediante desconsideração da personalidade jurídica.

 

Inclusive, esse tem sido o entendimento adotado pelos Tribunais, conforme se denota dos julgados do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, colacionados abaixo:

 

Agravo de instrumento – Incidente de desconsideração da personalidade jurídica com pedido de extensão dos efeitos da falência – Decisão de origem que julgou o incidente procedente, para desconsiderar a personalidade jurídica e estender a falência a todos os requeridos, pessoas físicas e jurídicas – Inconformismo da GVC Plus (antes EIRELI) e da sua titular, Giovanna – Acolhimento em parte – Desconsideração da personalidade jurídica adequadamente reconhecida – Presentes o desvio de finalidade, a confusão patrimonial e o benefício decorrente do abuso (art. 50 do CC)– Acervo probatório suficiente para concluir que, após a quebra da Flypark e apesar da ordem de lacração, o negócio continuou sob a condução de outra empresa (Cristina Maria de Araújo Cocci Estacionamentos e Garagens Ltda.), cuja titular também compunha o quadro societário da falida e, no seio familiar, utilizou-se da GVC Plus, titularizada por sua filha Giovanna, para promover a movimentação financeira do empreendimento falido – Confissão, das recorrentes, de que a GVC Plus serviu, mesmo, para tal finalidade – Desconsideração da personalidade jurídica, contudo, que não é instrumento para extensão dos efeitos da falência à pessoa natural – Ressalva nesse sentido – Confusão patrimonial que se deve ter por abrangente, justificando a arrecadação de todo o patrimônio da sociedade e de sua sócia administradora, ressalvados os bens de natureza impenhorável desta – Decisão reformada em parte para, mantida a extensão dos efeitos da falência em relação à agravante GVC Plus, assentar que, no que toca à recorrente Giovanna, dá-se a desconsideração da personalidade jurídica, com responsabilidade subsidiária pelo passivo da falida e ressalvados os seus bens impenhoráveis – Recurso provido em parte.

(TJ-SP – AI: 21820104620218260000 SP 2182010-46.2021.8.26.0000, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 31/03/2022, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 31/03/2022)

 

“Incidente de desconsideração de personalidade jurídica apresentado nos autos de autofalência. Decisão que deferiu pedido do administrador da massa falida de inclusão da controladora desta e de sua responsabilização pelas dívidas. Agravo de instrumento da controladora. Elementos dos autos a comprovar o desvio de finalidade da empresa falida, nos termos do art. 50 do Código Civil. Sociedade que requereu autofalência pouco tempo depois de encerrada sua recuperação judicial, quando já não tinha qualquer patrimônio, mas acumulava elevado passivo fiscal e trabalhista. Recuperação judicial que foi utilizada pela falida para promoção de um verdadeiro esvaziamento patrimonial. O instituto da desconsideração busca coibir a disfunção que resulta da utilização abusiva da personalidade jurídica, com desvio de finalidade. Uso abusivo da personalidade jurídica da falida, com o intuito de frustrar credores fiscais e trabalhistas. Manutenção da decisão recorrida, nos termos do art. 252 do RITJSP. Agravo de instrumento a que se nega provimento.

(TJ-SP – AI: 22498925920208260000 SP 2249892-59.2020.8.26.0000, Relator: Cesar Ciampolini, Data de Julgamento: 07/04/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 10/04/2021)”

 

 

Conclui-se, portanto, que à medida que o ordenamento jurídico brasileiro foi evoluindo, a extensão da falência – e seus efeitos – aos sócios de empresas de responsabilidade limitada tornou-se vedada, considerando as implicações que o status de falido trazia na esfera personalíssima daquele que o carregava. No entanto, muito embora aos sócios não possa ser atribuída a extensão da falência, estes ainda poderão ter seus bens particulares atingidos, no limite da obrigação da empresa, desde que comprovado o abuso de personalidade jurídica mediante desvio de finalidade ou confusão entre o patrimônio do sócio e da sociedade, nos termos do artigo 50, do Código Civil, e 133 a 137, do Código de Processo Civil, não se limitando apenas aos sócios, mas podendo atingir igualmente terceiros, grupos ou administradores da empresa.

 

Ana Julia Morgado, graduanda em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, cursando o 8° semestre. Estagiária do Yuri Gallinari Advogados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1]Art. 6°: A responsabilidade solidária dos diretores das sociedades anônimas e dos gerentes das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, estabelecida nas respectivas leis; a dos sócios comanditários (Código Comercial, art. 314), e a do sócio oculto (Código Comercial, art. 305), serão apuradas, e tornar-se-ão efetivas, mediante processo ordinário, no juízo da falência, aplicando-se ao caso o disposto no art. 50, § 1°.”

[2] Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. – 2. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2021.

[3] Costa, Daniel Carnio. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 / Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo – Curitiba: Juruá, 2021.

 

 

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