Era digital e tributação pelo ISS: superação da dicotomia entre obrigação de dar e de fazer para a identificação do conceito de serviços

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16/03/2021
Retenções indevidas de ISS
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Autor: BRENNO MENEZES SOARES, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2008). Pós-graduado – Especialização lato sensu em Direito Privado pela Universidade Estadual Vale do Acaraú.- UVA (2009). Especialização lato sensu em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários-IBET (2018).  Exerceu advocacia privada no Estado do Ceará (2009-2013). Ex-Procurador do Município de João Pessoa/PB (2013). Desde 2013 exerce cargo efetivo de Procurador do Município de Campinas/SP. Atualmente é Chefe da Coordenadoria Setorial de Ações Financeiro-Tributárias na PGM/Campinas.

 Coautora: MARIA DANIELLE REZENDE DE TOLEDO, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (2000). Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM em convenio com o Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC (2003). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais – IICS – Centro de Extensão Universitária – CEU (2008). Pós-graduada em Gestão de Tributos – Unicamp (2020).  Advogada, Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/Campinas.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo tecer considerações sobre a tributação pelo ISS na era digital, analisando julgamentos relevantes dos Tribunais Superiores, em especial apontando a necessidade de reflexão mais aprofundada sobre o conceito de serviço, a exigir resposta rápida do Poder Legislativo, em virtude da superação da dicotomia entre os conceitos de obrigação de dar e de fazer para identificar, pura e simplesmente,  a natureza do serviço a incidir o ISS.

Sumário: 1. Introdução. 2. Reflexões sobre serviço: Obrigação de dar ou de fazer. 3. Considerações Finais. 4. Bibliografia.

  1. INTRODUÇÃO – ISS

 

O Imposto sobre Serviços de qualquer natureza (ISS ou ISSQN), de competência dos Municípios e Distrito Federal, incide sobre a prestação de serviços que não são tributados pelo ICMS, conforme dispõe a Lei Complementar 116/03, conjugada à Lista Anexa de Serviços.

 

Os pontos divergentes na análise do ISS concentram-se, em grande parte, na identificação dos serviços, aqui incluído até o conceito de serviço, suas interpretações extensivas ou ainda, no acirramento de discussões sobre o local de recolhimento, decorrente da existência do termo “congêneres” também para a configuração do Município competente para a instituição e cobrança.

 

Nesse contexto, ponderada Renato Sorroce Zouain que não há mera discricionariedade do intérprete na conceituação do venha a ser serviço elencado no texto constitucional como tributável pelo ISS, estando o intérprete sujeito aos limites explícitos e implícitos do sistema constitucional ao qual a previsão normativa de instituição integra[1].

 

Por outro lado, a jurisprudência dos Tribunais Superiores já há muito possui o entendimento de que a lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/03 é taxativa, mas admite a interpretação extensiva.

 

Nesse sentido, é a posição do Superior Tribunal de Justiça firmada em sede de recurso repetitivo desde 2009, nos autos do Recurso Especial 1.111.234/PR[2].

 

E mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE 784.439, decidido em sede de repercussão geral – Tema 296 –, igualmente posicionou-se no sentido de que a lista de serviços afeta ao ISS é taxativa, mas extensível a atividades inerentes às previstas na lei.

 

Destacamos o entendimento da Relatora Min. Rosa Weber – acompanhada pela maioria – para quem “embora a lei complementar não tenha plena liberdade de qualificar como serviço tudo aquilo que queira, a jurisprudência admite que ela o faça em relação a certas atividades econômicas que não se enquadram diretamente em outra categoria jurídica tributável”. Demais disso, consignou-se ainda que “A incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado, pois os efeitos jurídicos de um fenômeno dependem daquilo que ele é realmente, e não do nome a ele atribuído pelas partes”.

 

Outrossim, as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca de aspectos da regra matriz de incidência do ISS remontam desde o Decreto-lei nº 406/68, perpassando pela atual Lei Complementar nº 116, de 2003, esta já objeto de várias alterações legislativas e decisões judiciais.

 

E com a era digital não poderia ser diferente, notadamente pela diversidade de atividades que vem surgindo rapidamente para satisfazer as infinitas necessidades pessoais e empresariais, especialmente em questões tecnológicas, relacionadas ao processamento de dados, comumente identificado como Internet das Coisas ou, em inglês, IOT (Internet of Things) (IOT)[3].

 

A referência legislativa da Internet das Coisas está no artigo 1º do Decreto 8.234/2014, o que demonstra antecipação do legislador quanto ao assunto que hoje está em absoluta evidência, vejamos: “sistemas de comunicação máquina a máquina os dispositivos que, sem intervenção humana, utilizem redes de telecomunicação para transmitir dados  a aplicações remotas com objetivo de monitorar, medir e controlar o próprio dispositivo, o ambiente ao seu redor, ou sistema de dados a ele conectados por meio dessas redes”.

 

E não poderia ser diferente, pois com a evolução das atividades, há necessidade de acompanhamento atualizado da tributação, como forma de conferir a análise segura e a tributação eficaz, de acordo com a essência constitucional da regra matriz de incidência.

 

Contudo, por vezes a legislação não consegue acompanhar explicitamente a velocidade de propagação das diversas formas de tecnologia. Assim, questões como atualização e identificação do fato gerador, muitas vezes tem que ser enfrentadas de forma pioneira pela doutrina e pela jurisprudência, que vinham utilizando a dicotomia civilista entre obrigações de dar e de fazer para confrontar as teses postas.

 

Porém, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a questão da incidência de ISS sobre plano de saúde no RE 651703, fixou a tese – em repercussão geral – que o ISS incide sobre o plano de saúde, mas não incide sobre o seguro saúde, individualizando efetivamente a essência da atividade, trazendo, a nosso sentir, um novo marco de entendimento.

 

Como o Supremo Tribunal Federal chegou nesse entendimento? Analisando as especificidades daquela atividade que está sendo tributada, mesmo exercício que será exigido para todas as atividades que acompanham a revolução tecnológica ou a era digital. Iniciamos com essa reflexão para trazer alguns questionamentos e considerações.

 

  1. REFLEXÕES SOBRE SERVIÇO: OBRIGAÇÃO DE DAR OU DE FAZER

 

Tradicionalmente, a doutrina e a jurisprudência sempre seguiram a linha de entendimento de que ICMS estava relacionado a uma obrigação de dar e o ISS a uma obrigação de fazer.

 

Talvez nas relações econômicas do passado fosse muito mais simples e até didático fazer essa diferenciação, até mesmo como meio de auxílio para enfrentar a ausência de uma definição explícita de serviço na Constituição Federal; ou seja, a instituição da competência tributária para a tributação sobre signo não definido criou assim o primeiro ponto de insegurança, pelo próprio Poder Legislativo, dependendo da interpretação do Judiciário para pacificar eventuais divergências.

 

Resta claro que há uma problemática legislativa quanto aos conceitos abertos de tipos de serviços (até mesmo porque o dinamismo da sociedade vai criando novas formas de relação, às quais sequer poderia o legislador prever): a identificação precisa e infalível do fato gerador, ou melhor, do que é o serviço tributável,  denominando-o na lista anexa de serviço, seria muito difícil e estático, porque a lei é editada, promulgada e publicada, sendo que a partir desse momento é que se revela possível a noção de seus efeitos.

 

Bem por isso, essa problemática vai, ao longo dos tempos, se estendendo para a apreciação do Poder Judiciário, especialmente para que se tenha o comando jurisdicional quanto à definição do que é serviço de qualquer natureza e consequentemente a definição do tributo incidente: ISS ou ICMS.

 

Rememore-se que o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a atividade bancária, decidiu, talvez para apaziguar a situação concreta e possibilitar novas análises futuras, que a lista anexa de serviços é taxativa, mas a interpretação é extensiva.

 

Ou seja, nada se resolveu para além do caso concreto (e, por vezes, com entendimentos dissonantes no próprio Judiciário relativos a caso semelhantes).

 

E retornando à classificação, novamente nos vemos discutindo a questão da obrigação de dar ou de fazer, aqui ainda discutindo se seria uma obrigação de meio ou de fim.

 

Analisando essa questão o Supremo Tribunal Federal entendeu que não era tributável pelo ISS a locação de bens móveis, sendo editada a Súmula 31, de caráter vinculante: É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.

 

Outra discussão quanto ao ISS e a configuração de serviço ocorreu no julgamento do Supremo Tribunal Federal – Tema 125, em que foi analisado à luz dos artigos 146, III, a; e 156, III, da Constituição Federal, a incidência, ou não, do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza– ISS sobre as operações de arrendamento mercantil (leasing).

 

Naquela oportunidade foi identificado serviço no arrendamento mercantil, sendo declarada a constitucionalidade da exigência do ISS, em mais uma discussão sobre conceito tradicional de serviço como obrigação de fazer.

 

Pois bem, após essa análise surgiram novas questões como, por exemplo, atividades que envolvem operações mistas, ensejando novas discussões. Nesse ponto, em que há linha tênue entre a hipótese de incidência do ISS e a hipótese de incidência do ICMS, entendemos  necessária a identificação e separação da base de cálculo de cada um dos impostos, de modo haveria a segregação da parcela vinculada à cada uma das espécies tributarias, sem que houvesse conflito entre elas.

 

Isso porque a bitributação somente teria espaço se houvesse para o mesmo signo de riqueza, a tributação do ISS e do ICMS, situação em que estaria plenamente afastada essa anomalia se repartido, na medida de cada uma das atividades e/ou mercadorias, o que seria cabível ao imposto estadual e o que seria cabível ao imposto municipal.

 

Ademais, a diferenciação entre obrigações de dar e de fazer, e assim a análise da atividade meio ou fim, pode revelar uma linha tão tênue a ponto de ser eventualmente objeto de elisão fiscal.

 

Aqui citamos um exemplo, ainda que escrachado, de um pintor que oferta seus pincéis e tintas em aluguel, mas se disponibiliza para “operá-los”. Qual a real natureza desse serviço?

 

Ainda a título de exemplificação, citamos ainda dois casos práticos, já postos em apreciação do Judiciário, quais sejam, a não incidência de ISS sobre locação de bens móveis em contratos mistos e o fornecimento de mercadorias com a simultânea prestação de serviços em restaurantes.

 

Em relação ao primeiro caso, é certo que por vezes, como na locação de um trator, ou de outras máquinas de uso especializado, há colocação de motorista vinculado ou à disposição do serviço, especialmente pelas particularidades da máquina, que exige um operador especializado. O serviço é o de locação do bem, com disponibilidade de operador da máquina, ou o serviço é aquele prestado pelo próprio operador, com o uso da máquina?

 

Vejamos o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:

 

“4. É certo que, nos debates travados ao exame da Proposta de Súmula Vinculante 35, que resultou na SV 31, suscitada dúvida no Plenário desta Corte quanto à situação em que a locação de bens móveis está associada à prestação de serviços, tendo-se concluído pela exclusão do termo “dissociadas da prestação de serviços”, uma vez não analisada a questão relativa aos contratos mistos. (…) 6. Em relações contratuais complexas ou mistas, apenas há falar em descumprimento da Súmula Vinculante 31 quando a locação de bem móvel esteja evidentemente dissociada da prestação de serviços, seja em relação ao objeto, seja no tocante ao valor detalhado da contraprestação financeira. (…) 8. Não há falar, pois, em contrariedade à Súmula Vinculante 31, que não contempla contratos mistos – locação de bens móveis acompanhado de prestação de serviço. 9. Verifica-se da sentença trazido pelo reclamante que, ao analisar o caso concreto, entendeu o Juízo de origem que as atividades prestadas não são apartadas, visto que, além da locação dos aparelhos de audiovisual, são disponibilizados os operadores, na prestação de serviço. (…) 13. Com essas ponderações, não estou a defender a impossibilidade de adequação da base de cálculo do ISS para dela excluir o valor relativo à locação do bem móvel, quando passível de delimitação. Estou simplesmente consignando que nada colhe a ação de reclamação constitucional para tal desiderato, à falta de jurisprudência consolidada nesse sentido. É que a verificação de possibilidade ou não de cisão da locação de bens móveis da prestação de serviços se dá com base no acervo fático-normativo do processo principal, matéria não sujeita à apreciação pela via da reclamação constitucional.

[Rcl 28.324, rel. min. Rosa Weber, dec. monocrática, j. 25-5-2018, DJE 107 de 30-5-2018.]

  

Em relação ao segundo caso, o Superior Tribunal de Justiça sumulou[4]  o entendimento de que “O fornecimento de mercadorias com a simultânea prestação de serviços em bares, restaurantes e estabelecimentos similares constitui fato gerador do ICMS a incidir sobre o valor total da operação”. Contudo, este entendimento é bastante antigo e, a nosso ver, deveria ser objeto de superação, overruling, pela referida Corte, já que não se amolda aos atuais tempos, já que por vezes o atendimento especializado e personalizado do serviço pode ser tão importante, ou até mais relevante, do que a própria mercadoria. Então a diferenciação entre dar e fazer não é apta para indicar a tributação com segurança.

 

Assim, a nosso ver, o Superior Tribunal de Justiça poderia ter realizado a segregação das atividades/mercadorias, identificando a parcela vinculada a prestação ser serviço, ou seja, a preparação do pedido do cliente, em todas as suas especificidades (aqui incidindo o ISS), daquelas mercadorias prontas para serem consumidas, como por exemplo uma bebida industrializada, que não passou por nenhum preparo, nenhuma especificação solicitada pelo cliente, incidindo, sobre essa parcela, o ICMS.

 

Ademais, ainda em relação à dicotomia entre os conceitos de obrigação de dar e de fazer vinculados à indicação da incidência de ICMS ou ISS, mister destacar o Voto exarado pelo Relator, Min. Gilmar Mendes, nos autos do Recurso Extraordinário 603.136, em sede de repercussão geral reconhecida, onde o Plenário do decidiu pela constitucionalidade da incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) nos contratos de franquia (franchising), no qual se observa também a preocupação quanto ao que se denominou de  “‘vazios’ no sistema tributário”:

 

“Pois bem. Dito isso, penso que há, por fim, um último aspecto que convém mencionar.

Refiro-me à distinção entre as diferentes prestações englobadas no contrato de franquia. Como é cediço, a doutrina costuma separar prestações abarcadas na relação de franquia como “atividade-fim”, tais como a cessão do uso de marca, e “atividade-meio”, tais como treinamento, orientação, publicidade, etc.

Há, pelo menos, duas razões pelas quais julgo que não devemos separá-las para fins fiscais, no caso dos autos, de modo que apenas as segundas (atividades-meio) ficassem sujeitas ao ISS, e não as primeiras (atividades-fim).

A primeira razão é que o contrato em questão é uma unidade, um plexo de obrigações contrapostas que inclui diferentes atividades. Não é apenas cessão de uso de marca, tampouco uma relação de assistência técnica ou transferência de know how ou segredo de indústria.

O contrato de franquia forma-se de umas e outras atividades, reunidas num só negócio jurídico. Nenhumas das referidas prestações, per se, seria suficiente para definir essa relação contratual. Separar umas das outras acabaria por desnaturar a relação contratual em questão, mudando-lhe o sentido prático e o escopo.

A segunda razão é de ordem eminentemente prática. A experiência, senhores Ministros, permite-me afirmar que essa interpretação – digo, no sentido de dar tratamento diferente à atividade-meio e à atividade-fim – certamente conduziria o contribuinte à tentação de manipular as formas contratuais e os custos individuais das diversas prestações, a fim de reduzir a carga fiscal incidente no contrato.

De fato, se tivéssemos que separar, num mesmo contrato, as prestações compreendidas na “atividade-fim” das compreendidas na “atividade-meio”, de modo que somente estas últimas ficassem sujeitas ao pagamento de ISS, em muito breve, as relações contratuais entre franqueadores e franqueados haveriam de se reorganizar, elevando o custo atribuído à dita “atividade-fim” e reduzindo, em contrapartida, o montante atribuído à “atividade-meio”.

De mais a mais, não posso deixar de fazer um registro, à guisa de reforço, em relação a tudo que até agora afirmei. Preocupam-me sobremaneira, no julgamento de casos tais, as consequências de nossa decisão sobre o exercício da competência impositiva municipal.

É que, pela decisão de inconstitucionalidade, estamos a criar “vazios” no sistema tributário, decotes na já combalida estrutura fiscal dos Estados e Municípios, fatos livres de tributação.

Cite-se como exemplo o precedente da não incidência de ISS sobre a locação de bens móveis. Sobre essa atividade, o Município não pode cobrar o ISS, tampouco o Estado pode exigir o ICMS. De certo modo, o mesmo aconteceria com os contratos de franquia, na hipótese de não se admitir a incidência do imposto municipal.

Enfim, penso que é pertinente fazer esse último registro, quanto às consequências deste julgamento, não como um elemento extrajurídico e, portanto, alheio a esse julgamento, mas como uma questão que tem, sim, íntima conexão com o cerne do sistema tributário e com o papel institucional nesta Corte.

Em outras palavras, nosso mister constitucional inclui a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte contra qualquer ação do fisco, seja no plano da legislação, seja no plano administrativo, que destoe do figurino constitucional; mas também a defesa das competências constitucionais tributárias e – devo dizer – da arrecadação tributária, peça-chave do conceito de Estado Fiscal, como hoje o conhecemos. Ademais, cumpre também consignar que a orientação que ora adoto não parece destoar da linha mais atual de pensamento desta Corte, no tocante à interpretação do art. 156, III, da Constituição Federal. Destaco, em especial, a decisão desta Corte no RE 651.703, de relatoria do Ministro Luiz Fux, tema 581 da sistemática da repercussão”.

Ainda que superada essa questão de simples denominação ou conceituação do que seria serviço, tem-se que com a evolução da economia, a era digital nos parece exigir reflexão mais aprofundada sobre o conceito de serviço, ainda mais depois do alargamento do conceito tradicionalmente utilizado, através da decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 651703:

 

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISSQN. ART. 156, III, CRFB/88. CONCEITO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA. ARTIGOS 109 E 110 DO CTN. AS OPERADORAS DE PLANOS PRIVADOS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE (PLANO DE SAÚDE E SEGURO-SAÚDE) REALIZAM PRESTAÇÃO DE SERVIÇO SUJEITA AO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA-ISSQN, PREVISTO NO ART. 156, III, DA CRFB/88.

(…) 2. A coexistência de conceitos jurídicos e extrajurídicos passíveis de recondução a um mesmo termo ou expressão, onde se requer a definição de qual conceito prevalece, se o jurídico ou o extrajurídico, impõe não deva ser excluída, a priori, a possibilidade de o Direito Tributário ter conceitos implícitos próprios ou mesmo fazer remissão, de forma tácita, a conceitos diversos daqueles constantes na legislação infraconstitucional, mormente quando se trata de interpretação do texto constitucional. 3. O Direito Constitucional Tributário adota conceitos próprios, razão pela qual não há um primado do Direito Privado. 4. O art. 110, do CTN, não veicula norma de interpretação constitucional, posto inadmissível interpretação autêntica da Constituição encartada com exclusividade pelo legislador infraconstitucional. 5. O conceito de prestação de “serviços de qualquer natureza” e seu alcance no texto constitucional não é condicionado de forma imutável pela legislação ordinária, tanto mais que, de outra forma, seria necessário concluir pela possibilidade de estabilização com força constitucional da legislação infraconstitucional, de modo a gerar confusão entre os planos normativos. 6. O texto constitucional ao empregar o signo “serviço”, que, a priori, conota um conceito específico na legislação infraconstitucional, não inibe a exegese constitucional que conjura o conceito de Direito Privado. 7. A exegese da Constituição configura a limitação hermenêutica dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional, por isso que, ainda que a contraposição entre obrigações de dar e de fazer, para fins de dirimir o conflito de competência entre o ISS e o ICMS, seja utilizada no âmbito do Direito Tributário, à luz do que dispõem os artigos 109 e 110, do CTN, novos critérios de interpretação têm progressivamente ampliado o seu espaço, permitindo uma releitura do papel conferido aos supracitados dispositivos. 8. A doutrina do tema, ao analisar os artigos 109 e 110, aponta que o CTN, que tem status de lei complementar, não pode estabelecer normas sobre a interpretação da Constituição, sob pena de restar vulnerado o princípio da sua supremacia constitucional. 9. A Constituição posto carente de conceitos verdadeiramente constitucionais, admite a fórmula diversa da interpretação da Constituição conforme a lei, o que significa que os conceitos constitucionais não são necessariamente aqueles assimilados na lei ordinária. 10. A Constituição Tributária deve ser interpretada de acordo com o pluralismo metodológico, abrindo-se para a interpretação segundo variados métodos, que vão desde o literal até o sistemático e teleológico, sendo certo que os conceitos constitucionais tributários não são fechados e unívocos, devendo-se recorrer também aos aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a Ciência das Finanças, Economia e Contabilidade. 11. A interpretação isolada do art. 110, do CTN, conduz à prevalência do método literal, dando aos conceitos de Direito Privado a primazia hermenêutica na ordem jurídica, o que resta inconcebível. Consequentemente, deve-se promover a interpretação conjugada dos artigos 109 e 110, do CTN, avultando o método sistemático quando estiverem em jogo institutos e conceitos utilizados pela Constituição, e, de outro, o método teleológico quando não haja a constitucionalização dos conceitos. 12. A unidade do ordenamento jurídico é conferida pela própria Constituição, por interpretação sistemática e axiológica, entre outros valores e princípios relevantes do ordenamento jurídico. 13. Os tributos sobre o consumo, ou tributos sobre o valor agregado, de que são exemplos o ISSQN e o ICMS, assimilam considerações econômicas, porquanto baseados em conceitos elaborados pelo próprio Direito Tributário ou em conceitos tecnológicos, caracterizados por grande fluidez e mutação quanto à sua natureza jurídica. 14. O critério econômico não se confunde com a vetusta teoria da interpretação econômica do fato gerador, consagrada no Código Tributário Alemão de 1919, rechaçada pela doutrina e jurisprudência, mas antes em reconhecimento da interação entre o Direito e a Economia, em substituição ao formalismo jurídico, a permitir a incidência do Princípio da Capacidade Contributiva. 15. A classificação das obrigações em “obrigação de dar”, de “fazer” e “não fazer”, tem cunho eminentemente civilista, como se observa das disposições no Título “Das Modalidades das Obrigações”, no Código Civil de 2002 (que seguiu a classificação do Código Civil de 1916), em: (i) obrigação de dar (coisa certa ou incerta) (arts. 233 a 246, CC); (ii) obrigação de fazer (arts. 247 a 249, CC); e (iii) obrigação de não fazer (arts. 250 e 251, CC), não é a mais apropriada para o enquadramento dos produtos e serviços resultantes da atividade econômica, pelo que deve ser apreciada cum grano salis. 16. A Suprema Corte, ao permitir a incidência do ISSQN nas operações de leasing financeiro e leaseback (RE 547.245 e 592.205), admitiu uma interpretação mais ampla do texto constitucional quanto ao conceito de “serviços” desvinculado do conceito de “obrigação de fazer” (RE 116.121), verbis: “EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado leaseback. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do leaseback. Recurso extraordinário a que se nega provimento.” (grifo nosso)(RE 592905, Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2009). 17. A lei complementar a que se refere o art. 156, III, da CRFB/88, ao definir os serviços de qualquer natureza a serem tributados pelo ISS a) arrola serviços por natureza; b) inclui serviços que, não exprimindo a natureza de outro tipo de atividade, passam à categoria de serviços, para fim de incidência do tributo, por força de lei, visto que, se assim não considerados, restariam incólumes a qualquer tributo; e c) em caso de operações mistas, afirma a prevalência do serviço, para fim de tributação pelo ISS. 18. O artigo 156, III, da CRFB/88, ao referir-se a serviços de qualquer natureza não os adstringiu às típicas obrigações de fazer, já que raciocínio adverso conduziria à afirmação de que haveria serviço apenas nas prestações de fazer, nos termos do que define o Direito Privado, o que contrasta com a maior amplitude semântica do termo adotado pela constituição, a qual inevitavelmente leva à ampliação da competência tributária na incidência do ISSQN. 19. A regra do art. 146, III, “a”, combinado com o art. 146, I, CRFB/88, remete à lei complementar a função de definir o conceito “de serviços de qualquer natureza”, o que é efetuado pela LC nº 116/2003. 20. A classificação (obrigação de dar e obrigação de fazer) escapa à ratio que o legislador constitucional pretendeu alcançar, ao elencar os serviços no texto constitucional tributáveis pelos impostos (v.g., serviços de comunicação – tributáveis pelo ICMS, art. 155, II, CRFB/88; serviços financeiros e securitários – tributáveis pelo IOF, art. 153, V, CRFB/88; e, residualmente, os demais serviços de qualquer natureza – tributáveis pelo ISSQN, art. 156. III, CRFB/88), qual seja, a de captar todas as atividades empresariais cujos produtos fossem serviços sujeitos a remuneração no mercado. 21. Sob este ângulo, o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador. (…) 24. A LC nº 116/2003 teve por objetivo ampliar o campo de incidência do ISSQN, principalmente no sentido de adaptar a sua anexa lista de serviços à realidade atual, relacionando numerosas atividades que não constavam dos atos legais antecedentes. (…)

(RE 651703, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-086 DIVULG 25-04-2017 PUBLIC 26-04-2017)

 

Assim, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal já vinha afastando a simples aplicação da dicotomia entre obrigações de dar e de fazer, quando decidiu pela incidência do ISS sobre o leasing. Contudo, a nosso ver essa dicotomia foi quebrada de fato, com o marco traçado no RE 651703, onde a Corte Constitucional trouxe claramente o entendimento de que “o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador”.

 

No tocante à era digital, fazendo-se uma breve retrospectiva, inicialmente tínhamos a máquina de escrever, pelo tudo tinha que ser feito de forma manual. Veio o computador, depois vieram as práticas digitais, disquete, download, para depois a mídia em CD e posteriormente o software, gerando o conceito de software de prateleira, que é a penas um produto posto à disposição, sem nenhum serviço personalizado envolvido, resultando na tributação pelo ICMS.

 

Nessa oportunidade o Supremo Tribunal Federal partiu de premissa de que a mercadoria necessariamente fosse algo material, corpóreo. Então a ratio decidendi utilizada pela Suprema Corte nessa oportunidade estava vinculada ao critério corpóreo para a caracterização da hipótese de incidência do ICMS.

 

O Supremo Tribunal Federal portando distinguiu que, em havendo contratação para elaboração de um software para uma empresa (serviço customizado), com aspectos personalizados, estaríamos diante de um serviço intelectual para criação daquele software, o que, portanto, relevaria um serviço tributado pelo ISS.

 

Não nos parece que essa definição será suficiente para o que vamos enfrentar, como por exemplo  a situação de SaS (Software as a Service), em que o consumidor não faz download do programa ou adquire uma licença definitiva para aquela versão, mas, apenas usa o serviço por um período de tempo. É preciso criar meios de controle, assim como para  streaming e o próprio download.

 

Após a análise quanto ao suporte físico do software,  o Supremo Tribunal Federal analisou operações com programa de computador por transferência eletrônica de dados, deixando de exigir o conteúdo embutido em suporte físico, materializado como CD-ROM, Disquete, pen drive, o que já representa uma atualização de acordo com o avanço da tecnologia.

 

Nesse aspecto, Luis Eduardo Schoueri e Guilherme Gaudino apresentam questionamentos interessantes como ponto de partida para a análise posta:

 

 

… a venda de mercadoria deixa de ser uma operação relativa à circulação de mercadoria pelo fato de ter valor agregado (ser inteligente)?; É possível que em transações envolvendo objetos inteligentes também haja uma prestação de serviço? Há serviço de comunicação ou serviço de valor adicionado no âmbito da Internet das Coisas?[5]

 

São questionamentos que precisam ser respondidos para configuração de tributação mais assertiva e segura, ante a vastidão de informações e interpretações quanto ao elemento preponderante.

 

A tributação de smart cards que também apresenta conflito entre o ISS e o ICMS, o que sabidamente Felipe Guerra dos Santos[6] analisa com profundidade, confrontando solução de consulta (RCT nº 732/2010) e a Solução de Consulta SF/DEJUG nº 1/2010 da Prefeitura do Município de São Paulo, frente à jurisprudência, demonstra que o avanço tecnológico enfrenta o conflito de tributação. Isso porque a aplicação da dicotomia entre os conceitos de obrigação de dar e obrigação de fazer já não mais consegue identificar de forma satisfatória a natureza das atividades exercidas nas necessidades cotidianas, como por exemplo o cartão de crédito-débito.

 

Assim, o que se precisa observar, especialmente a partir do RE 651.703, é que “o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador”. Logo, encerra-se um logo debate judicial que por décadas se instaurou acerca da pura e simples análise do conceito de obrigação de dar e de fazer.

 

Por outro lado, inicia-se um debate acerca de quais serviços vinculados à tecnologia e como ocorrerá a tributação do ISS, já que o oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador, é a tônica da era digital.

 

Portanto, resta premente a necessidade de uma resposta rápida, principalmente do Poder Legislativo, em virtude da constante atualização tecnológica que precisa de definição quanto à tributação. Talvez a reforma tributária possa resolver a divergência entre ISS e ICMS, pois hoje a margem de interpretação vaga e genérica de serviços proporcionam decisões diferentes, causando insegurança jurídica.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A proliferação de novos negócios decorrentes da revolução digital virou um gargalo para o recolhimento de impostos no Brasil – e no mundo. Na era dos aplicativos de serviços, impressoras 3D, robôs, moedas virtuais e marketplaces, o sistema tributário tende a ficar obsoleto se não atualizar com a velocidade das alterações e inovações da economia, indústria, prestação de serviços e da própria sociedade.

 

           

  1. BIBLIOGRAFIA

 

BRASIL JR., Vicente. Coordenador. Questões Práticas do ISS. São Paulo: OnixJur, 2011.

MELO, José Eduardo Soares de. ISS – Aspectos Teóricos e Práticos. 4ª Ed. São Paulo: Dialética, 2005.

MONTEIRO, Alexandre. Tributação na economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas.  Alexandre Monteiro, Renato Faria, Ricardo Maito. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

 

SANTOS, Felipe Guerra. Tributação de Smart Cards. O conflito de competência entre o Estado de São Paulo e o Município de São Paulo. São Paulo: Almedina, 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 18 de julho de 2020.

BRASIL. Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp116.htm> . Acesso em 18 de julho de 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 592905. Disponível em <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur174290/false>. Acesso em 19 de julho de 2020.

[1] ZOUAIN, Renato Sorroce. A Constituição Federal de 1988 e as Competências Tributárias. In Questões Práticas do ISS. Coordenador Vicente Brasil Júnior. São Paulo: Onixjur, 2011. Pág. 466.

[2] Entendimento referendado posteriormente pela Súmula 424/STJ: “É legítima a incidência de ISS sobre os serviços bancários congêneres da lista anexa ao DL n. 406/1968 e à LC n. 56/1987”.

[3] Nesse sentido, precisas as palavras de Dayana de Carvalho Uhdre: Trata-se, grosso modo, de uma rede de objetos físicos (“coisas”) que se conectam à internet e/ou entre si (por outros meios, tais como bluetooth, radiofrequência etc.), e que detêm capacidade de recolher e trocar dados sem a intermediação humana. (in Internet das coisas e seus desafios tributários: ISS e/ou ICMS? Eis a questão… Revista FESDT, n. 9, abr. 2019.

[4] Súmula 163-STJ.

[5] SCHOUERI, Luis Eduardo. GAlDINO, Guilherme. Internet das Coisas à Luz do ICMS e do ISS: entre mercadoria, prestação de serviço de comunicação e serviço de valor adicionado. In Tributação da Economia Digital: desafios do Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

[6] SANTOS, Felipe Guerra. Tributação de Smart Cards. O conflito e competência entre o Estado de São Paulo e o Município de São Paulo. São Paulo: Almedina, 2018.

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