Da (im)possibilidade de concretização da Lei Modelo da Uncitral perante o Poder Judiciário do Brasil

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*Carla Daiara Santos[1]

 

Com o advento da globalização é crescente o número de relações comerciais internacionais, grupos plurissocietários multinacionais, o que desafia os países a buscarem normas capazes de operacionalizar essas relações. A questão se torna ainda mais complexa quando se está diante da situação de crise econômica empresarial (insolvência).

A princípio, quando em crise, as empresas se submetem ao direito doméstico (nacional), sem jurisdição para atingir subsidiárias, ativos e credores localizados em outros países. Isso porque, a maior parte dos países ainda não adotou normas para tratar do tema, em razão de diferenças políticas, filosóficas e processuais, o que gera evidentes conflitos e obstáculos aos bens, credores e devedores, tornando tanto a liquidação, quanto o processo de soerguimento, ineficientes. Ademais, as principais consequências da ausência de uniformização do procedimento são a falta de previsibilidade e transparência.

Assim, a reestruturação ou realocação eficiente requer a coordenação de interesses e cooperação entre jurisdições, visando à uniformização do procedimento para tratar de situações envolvendo subsidiárias, estabelecimentos comerciais, bens ou credores localizados em mais de um país.

Nesse panorama, a insolvência transnacional busca resolver problemas relativos à coordenação de jurisdições e leis nacionais. Para tanto, surgiram correntes doutrinárias diversas (modelo territorialista, universalista e os modelos intermediários) acerca de como os procedimentos internacionais devem ser aplicados.

Em 2006, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional publicou, em Nova Iorque, o Guia Legislativo sobre o Regime de Insolvência[2] aprovado pela Resolução n.59/40, de 02 de dezembro de 2004. O texto aprovado contém o teor da Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional ‘‘para sua incorporação ao direito interno’’. A referida Lei foi recentemente adotada pelo Brasil e introduzida no capítulo VI-A da lei de falências n° 11.101/2005, composto pelo art. 167-A ao art.167-Y e se alicerça no instrumento de Soft Law, que tem a pretensão de ser transformado em diploma vinculante e internacionalmente assimilado.

Deste modo, são três as regras de interpretação previstas pelo legislador[3]: seu objetivo é a cooperação internacional, a necessidade de uniformidade de sua aplicação e a observância da boa-fé; as medidas de assistência aos processos estrangeiros são meramente exemplificativas; havendo conflito com normas em tratados ou convenções, aplica-se a Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (LREF); o juiz não pode deixar de aplicar as disposições, salvo no caso de ofensa à ordem pública.

Outrossim, para que haja a maximização dos ativos e a maior satisfação dos credores e dos interesses de todos os envolvidos no processo de insolvência transnacional, a cooperação entre os representantes de dois ou mais países é fundamental, de modo que essa cooperação não é apenas incentivada, como é obrigatória em qualquer momento do processo, antes do reconhecimento do processo estrangeiro ou mesmo do seu pedido, e posteriormente ao seu reconhecimento durante a implementação das medidas de assistência.

Convém destacar ainda que, após o reconhecimento de um processo estrangeiro principal, pode-se dar início, no Brasil, a um processo de falência, de recuperação (judicial ou extrajudicial), relativo exclusivamente a bens e estabelecimentos do devedor no Brasil, podendo se estender a outros bens, na forma permitida no direito brasileiro, caso seja necessário à cooperação e à coordenação com o processo estrangeiro principal.

Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é analisar a (im)possibilidade de concretização da Lei Modelo da UNCITRAL diante do Poder Judiciário brasileiro, pois além do Brasil ser um país novo na compreensão e na aplicação dos fundamentos da lei e da insolvência transnacional, enfrenta grandes problemas de política judiciária com déficit de varas especializadas na matéria.

A principal crítica acerca da incorporação da Lei Modelo da UNCITRAL é o fato dela partir do pressuposto de equidade entre os países, o que não ocorre na prática e em um país de dimensões continentais como o Brasil (27 estados, distribuídos em 05 regiões – norte, nordeste, sul, sudeste e centro-oeste – e o Distrito Federal, totalizando mais de 5,5 mil municípios[4]). A sua grande extensão comporta realidades econômicas e sociais bem distintas, o que gera reflexos também em sua organização judiciária.

Conforme dados do Justiça em Números[5], na Justiça Estadual, as regiões Sul e Sudeste são compostas, basicamente, por tribunais de grande porte (com exceção do TJSC e do TJES). Os cinco maiores tribunais estaduais (TJRS, TJPR, TJSP, TJRJ e TJMG) concentram 64% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e 51% da população brasileira, ao passo que os cinco menores tribunais estaduais (TJRR, TJAC, TJAP, TJTO, TJAL) abarcam apenas 2% do PIB e 3% da população.

O Poder Judiciário possui uma relação de 8,5 magistrados(as) por cem mil habitantes, ou, em outras palavras, um(a) magistrado(a) para cada grupo de 11.764 pessoas[6]. A título de comparação, na Europa essa mesma relação é de um(a) magistrado(a) para 5.690 pessoas, ou seja, no Brasil há praticamente a metade do número de juízes(as) por habitante do que nos países europeus[7].

Há ainda uma grande disparidade no que tange o número de magistrados entre o primeiro e segundo grau de jurisdição. Os cargos vagos são, em sua maioria, de juízes(as) – enquanto no segundo grau existem 109 cargos de desembargadores(as) criados por lei e não providos (4,3%), no primeiro grau há 4.384 cargos não providos (22%)[8].

Ademais, convém salientar o baixo número de Varas especializadas em Falência e Recuperação Judicial no Brasil para lidar com as complexidades e especificidades do processo. Há apenas 23 varas especializadas distribuídas em dez estados. São Paulo concentra cinco delas. Ceará, Mato Grosso e Tocantins indicaram ter três varas especializadas cada. Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná têm duas varas, enquanto Distrito Federal, Santa Catarina e Sergipe têm apenas um juízo especializado[9].

O instituto da insolvência contempla uma série de particularidades, o que exige um nível de especialização por parte do julgador e a situação se torna ainda mais complexa quando falamos de insolvência transnacional.

Os dados demonstram claramente uma série de problemas enfrentados pelo Poder Judiciário do Brasil, os quais se tornam ainda mais acentuados ao considerarmos a questão objeto desse trabalho. O que nos leva a crer em um primeiro momento pela impossibilidade de se concretizar de forma efetiva a Lei Modelo da UNCITRAL.

Entretanto, ciente da importância de existirem Varas especializadas para tratar das complexidades e especificidades do processo de insolvência, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Recomendação nº 56 de 22/10/2019[10], a fim de promover a especialização de Varas e a criação de câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação empresarial e outras matérias de Direito Empresarial.

Note-se, todavia, que a referida Recomendação foi publicada antes da alteração legislativa que incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro, a insolvência transnacional, o que demonstra ainda mais urgência no cumprimento da Recomendação por parte dos Tribunais brasileiros.

Nesse aspecto, somente quatro[11] dos 27 estados, da República Federativa do Brasil já contam em sua estrutura com a previsão ou a efetiva instalação de Câmaras Especializadas em Falência e Recuperação Empresarial: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná.

Por sua vez, a Resolução nº 394/21[12], baseada no guia de cooperação e comunicação direta entre juízes de insolvência editado pelo Judicial Insolvency Network (JIN) foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a fim de estabelecer regras de cooperação e de comunicação direta com juízos estrangeiros de insolvência para o processamento e julgamento de insolvências transnacionais. O que demonstra uma tentativa por parte dos órgãos competentes de assegurar a concretização do instituto da insolvência transnacional em que pese os problemas de política judiciária enfrentados pelo Brasil.

Todavia, só o tempo nos dará a resposta concreta, mas fato é que a Cooperação Jurídica Internacional surge como um valioso recurso para a obtenção da uniformidade, bem como da harmonização diante da aplicação da recuperação judicial às multinacionais, sendo os meios de cooperação judicial os mais amplos possíveis a fim de facilitar a sua utilização.

[1] Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Advogada, administradora judicial, professora e membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB/Campinas. carladaiara@gmail.com

[2] https://uncitral.un.org/es/texts/insolvency/legislativeguides/insolvency_law

[3] Lei nº 11.1001/2005, alterada pela Lei nº 14.112/2020. Art. 167-A. Este Capítulo disciplina a insolvência transnacional, com o objetivo de proporcionar mecanismos efetivos para: […]

  • 1º Na interpretação das disposições deste Capítulo, deverão ser considerados o seu objetivo de cooperação internacional, a necessidade de uniformidade de sua aplicação e a observância da boa-fé.
  • 2º As medidas de assistência aos processos estrangeiros mencionadas neste Capítulo formam um rol meramente exemplificativo, de modo que outras medidas, ainda que previstas em leis distintas, solicitadas pelo representante estrangeiro, pela autoridade estrangeira ou pelo juízo brasileiro poderão ser deferidas pelo juiz competente ou promovidas diretamente pelo administrador judicial, com imediata comunicação nos autos.
  • 3º Em caso de conflito, as obrigações assumidas em tratados ou convenções internacionais em vigor no Brasil prevalecerão sobre as disposições deste Capítulo.
  • 4º O juiz somente poderá deixar de aplicar as disposições deste Capítulo se, no caso concreto, a sua aplicação configurar manifesta ofensa à ordem pública.

[4] Conforme apurado no último censo demográfico de 2022, realizado pelo IBGE. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/sobre/numeros-do censo.html

[5] CNJ, 2022a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf

[6] Idem.

[7] Dados disponíveis em https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Main_Page

[8] CNJ, 2022a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf

[9] É o que mostra a pesquisa “Especialização e Consensualidade na Recuperação de Empresas”, do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/fgv-recuperacao-empresas.pdf

[10] O inteiro teor da Recomendação do CNJ está disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3068

[11] É o que mostra a pesquisa “Especialização e Consensualidade na Recuperação de Empresas”, do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/fgv-recuperacao-empresas.pdf

[12] O inteiro teor da Recomendação do CNJ está disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3956

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