Crônica (de uma) crise da empresa familiar

Alienação do principal estabelecimento da empresa em Recuperação Judicial
16/02/2024
Da (im)possibilidade de concretização da Lei Modelo da Uncitral perante o Poder Judiciário do Brasil
21/02/2024
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*Maria Tereza Tedde de Moraes – 

Era um sujeito criativo e trabalhador, que a despeito do caos político e econômico em que navega nosso país, pôde aqui vislumbrar uma oportunidade empresarial.

Sem recursos e planejamento suficientes para a obtenção de investimento ou associação a alguém efetivamente apto a contribuir com o empreendimento, uniu-se ao seu irmão mais confiável, para divisão dos custos iniciais.

Sem assessores especializados, resolviam os problemas conforme apareciam.

Quando o dinheiro acabou, buscaram financiamento bancário, garantido por seus imóveis pessoais.

Os custos da operação inviabilizavam tanto a distribuição de lucros quanto a remuneração adequada pelo trabalho que prestavam à sociedade.

Pagaram, então, a escola dos filhos com o parco faturamento da empresa, deixando os impostos para quando as coisas melhorassem.

Empregaram um de seus filhos, mesmo sem a qualificação necessária, pois precisavam de mão-de-obra, e o rapaz, de um emprego.

O tempo passou e as condições melhoraram, mas os maus hábitos de gestão estavam enraizados.

Embora os irmãos e seus filhos (todos agora incluídos no contrato social) trabalhassem na empresa, nenhum recebia pró-labore, só lucros, embora a acurácia de tal classificação contábil fosse, no mínimo, duvidosa.

Sabendo que os cargos mais altos nunca lhes seriam designados, os demais empregados atinham-se ao mínimo necessário à manutenção de seus empregos. Os mais ambiciosos logo buscavam melhores oportunidades.

A ineficiência, todavia, eventualmente cobrou seu preço. Quando pedidos de falência começaram a eclodir, buscaram seu advogado de confiança, a despeito de não ser um especialista.

Foi-lhes sugerido que ingressassem com pedido de recuperação judicial para postergar tanto quanto possível a falência, dando-lhes tempo para ocultar o patrimônio pessoal construído com o esforço de uma vida. Concordaram, pois não lhes parecia justo entregar seu patrimônio de bandeja.

Mas a operação não suportou o escrutínio judicial e a fiscalização dos credores. Quando avaliados os atos outrora praticados, muitos restaram reconhecidos fraudulentos e o patrimônio pessoal da família não foi poupado.

Essa história é fictícia, mas baseada em tantas acompanhadas ao longo de nossa trajetória profissional, sendo que nossa experiência mostra que o sentimento dos personagens decorreu mais de sua equivocada noção do que significa exercer atividade empresarial do que de efetiva injustiça sofrida.

Notamos, de fato, que em estruturas nas quais um mesmo sujeito figura como investidor e administrador é comum ignorar-se também as distinções entre sócio, administrador e sociedade.

Esclarecemos, nesse passo, que ao investidor cabe o aporte de capital e sua única contrapartida é o auferimento de lucros, se houver.

Ao administrador, resta destinar tais fundos à consecução do objeto social, remunerando-se por pró-labore conforme às práticas de mercado, não importando suas condições pessoais e posição familiar.

No que concerne à sociedade, embora seja a única devedora das obrigações contraídas, é também a exclusiva destinatária dos frutos decorrentes da atividade, devendo esses destinar-se, primeiramente, ao custeio da operação e à realização de novos investimentos.

Seguramente, muitos dos problemas enfrentados por empresas familiares seriam evitados se observada essa separação.

Deixando de lado o mundo ideal, e aceitando que se os sujeitos fossem empreender apenas em condições perfeitas, provavelmente estaríamos até hoje arrastando arados, é crucial que, ao menos quando superadas as dificuldades iniciais de constituição da empresa, sua gestão evolua.

Para auxiliar, sugerimos que cada passo seja avaliado sob a perspectiva de alguém que não integre a família.

Ou seja, se o administrador não fosse sócio, teria utilizado o caixa da empresa para adquirir imóveis não operacionais, ou prestado garantia a terceiros?

Teria contratado a empresa de um parente para prestar serviços para a sua?

Escolheria determinada pessoa para ocupar um cargo de gestão, generosamente remunerado, se não fosse da família?

Aceitaria fornecer produtos a preços baixos se o adquirente não fosse seu parente?

Tais questões, úteis na abundância, tornam-se vitais na escassez.

Se levarem à conclusão de inviabilidade do negócio, ao menos deve-se ajustar a gestão para encerrá-lo adequadamente, possibilitando novas empreitadas.

Ao revés, se se constatar que, com a devida profissionalização, pode-se atingir as melhores práticas de gestão, aumentar-se-ão as chances de prosperidade.

Com o saneamento, remédios outrora evitados, como o processo de recuperação judicial, não só perdem a aura de punição ou postergação de uma morte inevitável, como transmutam-se em ferramentas úteis para o saneamento de questões complexas e viabilização de novos investimentos.

Sabemos quão difícil é afastar objetivos familiares de decisões empresariais.

Mas a atividade empresarial não se notabiliza por suas facilidades e a superação de tais entraves é basilar tanto para a sustentabilidade da empresa quanto para a sua retirada digna do mercado.

 

Maria Tereza Tedde de MoraesAdvogada nas áreas Cível e Empresarial, sócia de Tedde Advogados. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduada em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Diretora Acadêmica no Brasil da International Women’s Insolvency & Restructuring Confederation (IWIRC). Membro da Comissão Permanente de Direito Falimentar e Recuperacional do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas (IBR-USP). Embaixadora, em São Paulo, do Instituto Brasileiro da Insolvência (IBAJUD). Membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/SP. Membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB Campinas. Autora de artigos relacionados ao Direito Empresarial, Recuperacional e Falimentar

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