Bens de Capital e a Exceção do Artigo 49§3º da Lei nº 11.101/2005

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*Isabela Dunaev

Não é novidade que certos créditos são excluídos dos efeitos da Recuperação Judicial, insculpidos no artigo 49 §§3º é 4º da Lei nº 11.101/2005 (“LREF”). Tais créditos, em regra, podem prosseguir com suãs respectivas execuções ate o cumprimento efetivo das obrigações entre credor e devedor, no limite do valor da garantia[1].

Para o presente artigo, focaremos nos créditos com garantia fiduciária, prelecionados no §3º do artigo 49[2], o qual é claro ao determinar que eles constituem exceção à regra estabelecida no caput, estando fora do escopo do procedimento de soerguimento.

A temática representa um dos assuntos mais problemáticos na Recuperação Judicial, gerando debates sobre a sua existência, efetividade e limites, cabendo aos Tribunais Pátrios e à Corte Superior trazer a sua pacificação e, consequentemente, maior segurança jurídica para o processo de recuperação judicial.

Isso porque, em que pese a legislação ser expressa, os proprietários fiduciários encontram dificuldades para excussão do seu crédito de forma plena, pautado, especialmente, na essencialidade do bem garantido para continuidade das atividades da sociedade em recuperação judicial.

Os Tribunais entendem que, mesmo aplicando-se o prazo do stay[3], os bens essenciais ao desenvolvimento da atividade não poderão ser expropriados a qualquer tempo, eis que sua retirada poderia inviabilizar o princípio maior dos processos de soerguimento, tendo como pilar o teor do artigo 47[4] da lei de regência.

Com o advento da Lei nº 14.112/2020, responsável pela reforma da Lei nº 11.101/2005, incluiu-se no texto legal o §º7-A no artigo 6º, pacificando a competência do Juízo Recuperacional para dirimir questões acerca dos bens essenciais para o desenvolvimento da atividade. Vejamos a redação do mencionado artigo:

  • 7º A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

Como se percebe, a legislação não traz em seu bojo a definição do bem de capital, deixando a critério do juízo recuperacional, em análise ao cenário concreto da sociedade devedora, definir a importância do bem dado em garantia para o desenvolvimento do processo de soerguimento.

A jurisprudência do STJ tem entendimento sedimentado sobre os critérios que definem o bem de capital, devendo estes ser objetivos, tratando-se de bem corpóreo, necessário ao exercício da atividade da recuperanda, conferindo interpretação sistemática que, a um só tempo, atenda aos ditames da lei de regência e não descaracterize ou esvazie a garantia fiduciária que recai sobre o “bem de capital”, que se encontra provisoriamente na posse da recuperanda[5].

Dentro deste contexto, muito se discute a respeito da cessão fiduciária de direitos creditórios.

A cessão fiduciária de direitos creditórios constitui modalidade de garantia muito utilizada pelas instituições financeiras, na qual o devedor (cedente) transfere ao terceiro (cessionário) a titularidade de créditos futuros, performados ou a performar.

No ambiente recuperacional, as instituições financeiras que possuem este tipo de garantia, promovem a retenção do valor diretamente na fonte, aplicando-se assim o instituto da trava bancária, eis que os recebíveis constituem propriedade fiduciária da instituição financeira, excluída dos efeitos da recuperação judicial por força do §3º do artigo 49 da LREF.

Contudo, é comum que os juízos recuperacionais procedam a suspensão da amortização aplicada pelas instituições financeiras, sob argumento de ser prejudicial à sociedade devedora, na medida em que a excussão da garantia limita o seu capital de giro e o desenvolvimento da atividade.

Atribui-se, nessa hipótese, a característica de bem essencial ao dinheiro objeto da garantia.

A matéria é controvertida nos Tribunais.

O E. STJ tem posicionamento firmado no sentido de que dinheiro não constitui bem essencial por não preencher os requisitos já elencados neste artigo[6]. É nesse esteio que a manutenção da trava bancária é medida que se impõe, vejamos o excerto do julgado:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CESSÃO FIDUCIÁRIA. RECEBÍVEIS. TRAVA BANCÁRIA. “STAY PERIOD”. LIBERAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO INTERNO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

  1. “Os recebíveis cedidos fiduciariamente não se enquadram na qualificação de bem de capital, sendo que sua utilização significa o esvaziamento da garantia fiduciária, não sendo possível a intervenção judicial para a sua liberação” (AgInt nos EDcl no REsp 1.680.456/SE, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 30/8/2021, DJe de 3/9/2021).
  2. Agravo interno provido para, em nova análise, conhecer do agravo e dar provimento ao recurso especial.

(AgInt no AREsp n. 1.942.555/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 25/8/2023.)

O entendimento é repristinado nas instâncias inferiores:

“RECUPERAÇÃO JUDICIAL ‘Stay period’ Contrato bancário com alienação fiduciária em garantia Proteção que não se estende ao contrato ‘sub judice’, conforme inteligência do art. 6º, § 7º-A, LRE Prima facie, garantia hígida. Dinheiro que não é considerado como bem de capital essencial. Possibilidade de cobrança nos limites do contrato bancário avençado. Garantia de eficácia da trava bancária –Precedentes. Decisão reformada – Recurso provido.” (TJSP. AgI nº 2150212-96.2023.8.26.0000. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Relator Desembargador J. B. Franco de Godoi. Data do Julgamento: 16/11/2023)

Malgrado o entendimento da Corte Superior, muitos Tribunais ponderam a essencialidade dos valores dados em garantia, modulando a capacidade de retenção efetiva pelas instituições financeiras. O Juízo recuperacional, competente para apreciação da matéria, avalia a imprescindibilidade da entrada de valores na sociedade bem como a abrangência da retenção a ser operada pela instituição financeira.

Agravo de Instrumento. Ação de Recuperação Judicial. “Trava bancária”. Decisão que deferiu parcialmente pedido de flexibilização dos direitos de propriedades dos credores fiduciários das recuperadas. Irresignação do Banco Safra S.A., credor das recuperadas. Crédito com garantia fiduciária que não se submete aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/05. No entanto, os precedentes deste Tribunal são no sentido de que é possível a flexibilização da chamada “trava bancária”, em observância ao princípio da preservação da empresa, para evitar que se inviabilize o soerguimento das empresas recuperandas. Decisão que não merece reparo. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJRJ AI: 00200158220238190000 202300227333, Relator: Des(ã). SIRLEY ABREU BIONDI, Data de Julgamento: 02/08/2023, SEXTA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 13ª CAMARA, Data de Publicação: 04/08/2023)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE INDEFERIU A REALIZAÇÃO DE PERÍCIA PRÉVIA REQUERIDA PELAS INSTITUIÇOES FINANCEIRAS, BEM COMO A INTIMAÇAO DOS CREDORES QUANTO AOS ATOS PROCESSUAIS PRATICADOS ATRAVES DE SEUS ADVOGADOS, DETERMINANDO, AINDA, A IMEDIATA RESTITUIÇAO DOS VALORES RETIDOS INDEVIDAMENTE PELOS BANCOS ITAU , ABC, SANTANDER, BRADESCO, SAFRA E DAYCOVAL, MEDIANTE DEPOSITO JUDICIAL NOS AUTOS, SOB PENA DE MULTA DIARIA NO VALOR DE R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS) POR CADA INSTITUIÇAO FINANCEIRA, FICANDO ESTAS INTIMADAS PARA QUE SE ABSTENHAM DE PRATICAR TODO E QUALQUER DESCONTO FUTURO PERTINENTE A RECEBIVEIS DE CARTA O DE CREDITO, A LIQUIDAÇAO DE EMPRESTIMOS, JUROS, OU QUALQUER OUTRAS POSSIVEIS TAXAS E CONTRATOS, SOB PENA DE INCORRER EM MULTA DIARIA NO VALOR ACIMA MENCIONADO. NECESSIDADE DE REALIZAÇAO DE CONSTATAÇAO PREVIA A FIM DE QUE SE VERIFIQUE A REGULARIDADE DOS DOCUMENTOS E CORREÇAO DOS DADOS INFORMADOS PELA EMPRESA DEVEDORA, BEM COMO A CORRESPONDENCIA DESTES COM A REALIDADE FÁTICA. PEDIDO DE CADASTRAMENTO PARA A INTIMAÇÃO DOS CREDORES ATRAVES DE SEUS ADVOGADOS QUE NAO ENCONTRA AMPARO NA LEI Nº 11.101/05, A QUAL PREVE, COMO REGRA, QUE A CIENTIFICAÇAO DOS INTERESSADOS DURANTE A FASE PRELIMINAR DA RECUPERAÇA O JUDICIAL SE DE POR INTERMEDIO DA PUBLICAÇAO DE EDITAIS. CESSA O FIDUCIARIA DE CREDITOS. TRAVA BANCARIA. PRESERVAÇAO DA EMPRESA RECUPERANDA. NECESSIDADE DE REFORMA PARCIAL DA DECISAO PARA PERMITIR A INCIDENCIA PARCIAL TRAVA BANCÁRIA NO PERCENTUAL DE 30% (TRINTA POR CENTO) EM FAVOR DO BANCO AGRAVANTE DOS CREDITOS SUJEITOS A CESSAO FIDUCIARIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo Juízo da Quinta Vara Empresarial da Comarca da Capital que, dentre outras providências: (i) indeferiu a realização de perícia prévia requerida pelos credores; (ii) não acolheu o pedido de cadastramento para a intimação dos credores por intermédio de seus advogados é; (iii) determinou ã “imediata restituição dos valores retidos indevidamente pelos Bancos Itaú , ABC, Santander, Bradesco, Safra e Daycoval, mediante deposito judicial nestes autos, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por cada instituição financeira, ficando estas intimadas para que se abstenham de praticar todo e qualquer desconto futuro pertinente a recebíveis de cartão de crédito, a liquidação de empréstimos, juros, ou qualquer outras possíveis taxas e contratos, sob pena de incorrer em multa diária no valor acima mencionado.” 2. Pretende o Agravante a reforma da decisão impugnada com espeque nos seguintes argumentos: (i) indispensabilidade de intimação dos advogados do Agravante e demais credores; (ii) necessidade de perícia prévia diante da gravidade dos fatos é provas submetidas ao juízo ã quo; (iii) violação do disposto no art. 49 §3° da Lei 11.101/05 é 421 é seguintes do CC/02, eis que o crédito fiduciário não sé submete aos efeitos da recuperação judicial é tampouco os recebíveis podem ser considerados bens de capital.

[…]

  1. De acordo com o critério temporal traçado pelo art. 49 da Lei nº. 11.101/2005, estão sujeitos a recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. 15. Todavia, o parágrafo 3º, do artigo 49, da Lei 11.101/05 prescreve uma exceção ã regra legal, determinando que não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens moveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporação es imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio. 16. Nestes casos, prevalecem os respectivos direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada ã legislação respectiva, não ser permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o paragrafo 4º, do artigo 6º, da lei de regência, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade. 17. Em exegese ao disposto no artigo 49, § 3º da Lei nº 11.101/05, a Quarta Turma do STJ firmou orientação no sentido de que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, por possuírem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. 18. No entanto, a jurisprudência converge no sentido de que, apesar do credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, especificamente em relação aos bens de capital, objeto da alienação fiduciária, os quais se constituem essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial da sociedade em recuperação, estariam temporariamente obstados à sua venda ou retirada do estabelecimento do devedor, em obediência ao princípio de preservação da empresa, enquanto vigente o prazo de suspensão previsto no § 4º do art. 6º da Lei n. 11.101/2005. 19. A avaliação da imprescindibilidade de determinado bem de capital, objeto de garantia fiduciária, ao desenvolvimento da atividade empresarial, compete ao Juízo Universal. (CC 153.473/PR, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. para Acórdão Ministro Luís Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 09/05/2018, DJe 26/06/2018). 20. Ocorre que, especificamente em relação ao crédito garantido por cessão fiduciária, o Superior Tribunal de Justiça possui julgados no sentido de que, por não se constituir bem de capital, este não poderia sofrer medidas restritivas impostas pelo juízo da recuperação, podendo o credor valer se da chamada trava bancária. 21. Conforme assentado pelo Min. Marco Aurélio Belize, no julgamento do REsp nº 1.758.746 GO, o “bem de capital” que a lei se refere há de ser concebido como bem corpóreo (móvel ou imóvel), empregado no processo produtivo da empresa encontrando-se, por isso, em sua posse –, afastando-se, assim, por completo, desse conceito, a cessão fiduciária de créditos dado em garantia ao empréstimo tomado pela empresa em recuperação judicial. 22. O posicionamento perfilhado no âmbito da jurisprudência da Corte Superior é no sentido de que os direitos creditórios sobre recebíveis possuem natureza jurídica de propriedade fiduciária não se sujeitando à recuperação judicial, e, por conseguinte, estando excluídos da proteção do stay period. 23. Malgrado o entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça de que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente em garantia não datados do pedido de recuperação, independentemente de ter ou não sido inscritos no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor, a discussão passou a ter novo enfoque em relação ao momento da constituição do crédito. 24. Com efeito, pretendeu-se conferir distinção em relação ao momento em que o crédito cedido fiduciariamente em garantia seria constituído, da seguinte forma: (i) créditos cedidos fiduciariamente em garantia e performados até a data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial seriam de propriedade do credor fiduciário, estando, portanto, abarcados pelo §3°, do art. 49; é (ii) créditos não performados até a data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, de modo que concursais ao procedimento recuperacional. 25. Contudo, a tese não encontrou respaldo no Superior Tribunal de Justiça, mantendo a orientação no sentido que o cré dito garantido fiduciariamente não se submete ã recuperação judicial, por força do art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, pois é de propriedade (resolúvel) do credor, e não da empresa recuperanda, motivo pelo qual desinfluente o momento em que é performado, se antes ou depois do processamento da recuperação. 26. Portanto, a diferenciação o entre créditos performados e a performar é indiferente para sua classificação na recuperação judicial, tendo em vista queé ã cessão de direitos sobre coisas móveis e de títulos de crédito encontra-se formalizada a partir da própria contratação, atraindo a incidência da regra traçada no ãrt.49, §3, da LRJF. 27. Não obstante, a posição sufragada pelo C. Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o crédito garantido por cessão fiduciária não se submete ao processo de recuperação judicial, não se perde de vista que a utilização da chamada trava bancária pode, na maioria dos casos, inviabilizar o soerguimento da empresa em recuperação judicial. 28. O princípio da preservação da empresa e de sua função social se constitui o pilar fundamental traçado pela Lei nº 11.101/05, e sobre o qual deve se alicerçam os interesses de todos os envolvidos no processo recuperacional, cujo escopo deve ser o de possibilitar a reabilitação da empresa viável, em momentânea crise econômico financeira, por intermédio de um equilíbrio de interesses. 29. Conferir uma interpretação compartimentada do art.49, §3º, da LRJF, pode importar na quebra de unicidade de todo o sistema recuperacional, se distanciando das matizes traçadas pela lei recuperacional para guiar sua aplicação e atingir o fim colimado pela norma legal que é a preservação da atividade empresarial e, por conseguinte, dos interesses sociais por ela abrangidos. 30. O interesse do credor fiduciário deve dialogar com o disposto no artigo 47, da Lei nº 11.101/05, a fim de possibilitar o êxito da recuperação e evitar que se estabeleça o pior cenário para todas as partes envolvidas, que será a decretação de falência da sociedade empresária. 31. Nessa perspectiva, sopesando os interesses em conflito com os princípios que orientam o processo recuperacional, a medida mais equânime seria permitir a incidência parcial da trava bancária na hipótese em que o crédito estiver garantido por cessão fiduciária. 32. Reforma parcial da decisão para permitir a incidência parcial trava bancária no percentual de 30% (trinta por cento) em favor do Banco Agravante, em se tratando de crédito oriundo de contrato garantido por cessão fiduciária. 33. Recurso parcialmente provido. (0038180-51.2021.8.19.0000 AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MONICA MARIA COSTA DI PIERO Julgamento: 16/08/2022 OITAVA CA MARA CIVEL)

 

Decisão que indeferiu tutela de urgência, mantendo “travas bancárias” realizadas por Banco credor. Agravo da recuperanda BENGE. Tutela recursal deferida em parte, determinando ao Banco que não o retivesse, entregando à autora metade dos valores e à outra metade depositando em juízo. […] Levantamentos, pelo credor PLENITUDE BANK, que inviabilizam a preservação da empresa em recuperação.  Manutenção das travas que também se mostram desfavoráveis ao próprio credor.  Contratos com a PETROBRAS preveem hipótese de rescisão em caso de falência. Particularidade do caso concreto que permite interpretação evolutiva da parte final do §3º do art. 49 da Lei 11.101/05. Ausência de confronto à precedente vinculativo. Precedentes jurisprudenciais. Medida que também respeita a função social da empresa e justiça social. Confirmação das tutelas de urgência. Abstenção de retenção de valores até o término do “stay period”. Determinação do voto Manutenção  do devendo PLENITUDE BANK em repassar 50% dos valores ã recuperando, cabendo ao juízo da recuperação dar a destinação cabível aos outros 50% Decisão agravada reformada Agravo da recuperanda parcialmente provido, com determinação o (TJSP. AgI. Nº 2165744 81.2021.8.26.0000. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal dée Justiça de São Paulo. Relatora Desembargadora Jane Franco Martins. Data do Julgamento: 15/12/2021)

A divergência jurisprudencial já foi alvejada também na doutrina, nas palavras de João Pedro Scallzili, Luis Spinelli e Rodrigo Tellechea[7]:

“Como esses créditos geralmente compreendem parte substancial dos recebíveis das empresas em crise, senão a totalidade de suãs receitas, é bastante comum a inclusão desses créditos na recuperação judicial seguida do questionamento da legalidade da garantia prestada é de requerimento de liberação os valores sob o argumento de representarem capital de giro essencial para a sobrevivência da atividade empresarial em crise. Em uma perspectiva jurisprudencial, tais operações de crédito são consideradas válidas, não sendo abrangidas pelos efeitos da recuperação judicial, exceto quando sé verifica problema na constituição da garantia. Existe, contudo, corrente jurisprudencial que defende a possibilidade de liberação dos recebíveis do devedor cedidos em garantia a terceiro durante o período de proteção (stay period), desde que o magistrado consiga enquadra-los na categoria “bem essencial ao exercício da atividade”, conforme ressalva feita no art. 49, §3º, ultima parte. “

Outra temática que persiste quando se trata de cessão fiduciária de recebíveis está atrelada aos créditos performados ou a performar. Na hipótese de se tratar de créditos futuros (a performar), a jurisprudência entendia que ele se sujeitava ao regime jurídico análogo ao da compra e venda de coisa futura, não existindo, portanto, a propriedade sobre o bem.

Agravo de instrumento – Recuperação judicial – Decisão recorrida que concedeu, em parte, a tutela de urgência requerida pelas recuperandas – Inconformismo das recuperandas quanto ao crédito detido pelo Banco Daycoval – Acolhimento em parte – Questão examinada que é adstrita à verificação do preenchimento dos pressupostos legais para a concessão da tutela de urgência – Pressupostos autorizadores da concessão da tutela de urgência requerida pela recuperanda que restaram evidenciados– Crédito do banco agravado decorrente de cédula de crédito bancário garantida por cessão fiduciária de direitos de créditos e por alienação fiduciária de bem imóvel – Em se tratando de alienação fiduciária de  créditos futuros, somente os créditos cedidos fiduciariamente até o pedido de recuperação judicial estão, em tese, sujeitos à regra prevista no artigo 49, § 3º, da Lei nº 11.101/05, de modo que os créditos não performados constituem, ao que tudo indica, créditos concursais – No que tange à alienação fiduciária de bem imóvel, ao que parece, a extraconcursalidade está limitada aos valores a serem obtidos com a excussão da garantia fiduciária – Enunciado nº 51 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal – Probabilidade do direito evidenciada – O periculum in mora, por sua vez, decorre do fato de que os valores decorrentes das vendas realizadas após o pedido de recuperação judicial são essenciais ao soerguimento da recuperanda – Sem prejuízo de melhor análise, quando do julgamento da impugnação de crédito distribuída pelo agravado, é o caso de acolher-se em parte a pretensão da recuperanda para limitar a retenção, pelo Banco agravado, apenas aos valores com lastro em recebíveis cedidos e performados até a data do pedido recuperacional, com devolução, a contrário senso, das retenções relativas aos créditos a performar, observando-se que as partes deverão colaborar com o administrador judicial e com o D. Juízo de origem para a correta análise dos créditos não performados, a fim de atender o comando jurisdicional aqui impugnado – Recurso parcialmente provido. (TJSP. AgI nº 2202641-40.2023.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Relator Desembargador Maurício Pessoa. Data do Julgamento: 14/11/2023)

“Sendo assim, a cessão fiduciária em garantia de crédito futuro não transfere, desde logo, a propriedade (rectius, titularidade) do crédito ainda não existente (ainda não constituído) ao credor fiduciário. No caso de créditos futuros, embora válida a cessão, a constituição da propriedade fiduciária (e fala-se, aqui, em propriedade, ontologicamente dada a sua natureza de bem móvel) fica sujeita ao implemento de condição suspensiva: a constituição do crédito cedido em garantia. Enquanto isso não ocorre, a eficácia da cessão resta suspensa, inexistindo propriedade fiduciária (cf. art. 125, do CC), porque inexistente seu objeto.” TJSP, Agravo de Instrumento no 2274677-56.2018.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Grava Brazil, data do julgamento. 13.05.2019.

Em julgado recente, pelas Turmas que compõem a Segunda Seção da Corte do STJ, pela relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, restou sedimentada a extraconcursalidade do crédito originário de contrato com cessão fiduciária em garantia de recebíveis, independente de constituírem créditos a performar, com supedâneo no teor do §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/2005.

A partir do entendimento sedimentado pela Corte, as instituições financeiras encontram respaldo para proceder à trava bancária, uma vez que a constituição do crédito fiduciário se dá com a formalização do contrato, não havendo de se falar em diferença entre crédito performado e a performar.

RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE RECEBÍVEIS. AUSÊNCIA DE DIFERENÇA ENTRE CRÉDITOS A SEREM PERFORMADOS APÓS A DECISÃO DE PROCESSAMENTO DA RECUEPERAÇÃO JUDICIAL E AQUELES JÁ PERFORMADOS ATÉ AQUELE MARCO TEMPORAL. CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA COM A CONTRATAÇÃO. ENTENDIMENTO DESTA CORTE NESSE SENTIDO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (Resp nº 1979903/SP, relatoria Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data do Julgamento 28/08/2023)

A matéria foi abordada anteriormente pela Terceira Turma do E. STJ, através do julgamento do Recurso Especial nº 1797196/SP, da relatoria do Ministro Bellizze, ocorrida em 12/04/2019, veja-se:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRETENSÃO DE EXCLUSÃO DE CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE AO ARGUMENTO DE QUE O TÍTULO DE CRÉDITO (DUPLICATAS VIRTUAIS) NÃO SE ENCONTRARIA DEVIDAMENTE DESCRITO NO INSTRUMENTO CONTRATUAL. DESCABIMENTO. CORRETA DESCRIÇÃO DO CRÉDITO, OBJETO DE CESSÃO. RECONHECIMENTO. OBSERVÂNCIA DA LEI DE REGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

  1. A controvérsia posta no presente recurso especial cinge-se em saber se, para a perfectibilização do negócio fiduciário, ao permitir a exclusão do credor titular da posição fiduciária dos efeitos da recuperação judicial, no específico caso de cessão fiduciária de direitos creditórios, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, os títulos representativos do crédito (no caso, duplicatas virtuais), como entendeu o Tribunal de origem; ou se o crédito, objeto de cessão, deve estar suficientemente identificado, como defende o banco recorrente.
  2. Dos termos do art. 18, IV, e 19, I, da Lei n. 9.514/1997, ressalta-se absolutamente claro que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que devem estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa.
  3. Por meio da cessão fiduciária de direitos creditórios, representados pelos correlatos títulos, o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede “seus recebíveis” à instituição financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá apropriar-se diretamente do crédito constante em conta vinculada (“trava bancária”) ou receber o respectivo pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante). Por conseguinte, em atenção à própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária bem incorporado e fungível, por excelência –, sua identificação no respectivo contrato, naturalmente, refere-se à mensuração do valor constante da conta vinculada ou dos “recebíveis”, cedidos em garantia ao débito proveniente do mútuo bancário e representados por títulos de crédito.
  4. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, embora não possua previsão legal que, por si só, obsta à adoção de uma interpretação judicial ampliativa cede a uma questão de ordem prática incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, é absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, o que inviabiliza, desde logo, sua determinação no contrato.
  5. Registre-se, inclusive, que a lei especial de regência (Lei n. 10.931/2004, que disciplina a cédula de crédito bancário) é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, por si só, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido).
  6. Na hipótese dos autos, as disposições contratuais estabelecidas pelas partes não deixam nenhuma margem de dúvidas quanto à indicação dos créditos cedidos, representados por duplicatas físicas ou escriturais sendo estas, por sua vez, representadas pelos correlatos borderôs, sob a forma escrita ou eletrônica –, os quais ingressarão, a esse título (em garantia fiduciária), em conta vinculada para esse exclusivo propósito.
  7. A duplicata virtual é emitida sob a forma escritural, mediante o lançamento em sistema eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda mercantil/prestação de serviços (no caso, às próprias recuperandas), responsável pela higidez da indicação.
  8. E, portanto, à própria devedora fiduciante cabe alimentar o sistema, com a emissão da duplicata eletrônica, que corporifica uma venda mercantil ou uma prestação de serviços por ela realizada, cuja veracidade é de sua exclusiva responsabilidade, gerando a seu favor um crédito, ao permitir a geração de um borderô (o qual contém, por referência, a respectiva duplicata), remetido ao sacado/devedor. Já se pode antever o absoluto contrassenso de se reconhecer a idoneidade desse documento em prol dos interessados daquele que é o próprio responsável por sua conformação. O pagamento, por sua vez, ingressa na conta vinculada, em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomado pela empresa fiduciante, não pairando nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa), nos moldes exigidos pelo art. 18, IV, da Lei n. 9.514/1997.
  9. Recurso especial provido.

A matéria atinente à trava bancária é de importância notória eis que gravitam ao seu redor o comportamento do mercado frente às empresas, estando ou não em processo de recuperação judicial. Em outras palavras, na medida em que as decisões proferidas pelos Tribunais Pátrios são divergentes, confere-se insegurança as instituições financeiras para liberação de crédito e investimentos.

Tal fato, por vias transversas, prejudica o sucesso do soerguimento e todos os seus objetivos, impactando diretamente na elaboração do Plano de Recuperação Judicial a ser proposto pela sociedade devedora e, consequentemente, o pagamento dos credores concursais.

Não se perde de vista a via crucis que os operadores do direito experimentam ao analisar a matéria, devendo se ater às consequências práticas e os efeitos, em especial das decisões proferidas pelos juízos competentes, buscando garantir maior segurança jurídica com arrimo no princípio norteador da LREF, delineado no seu artigo 47.

É nesse sentido que nos cabe ponderar a respeito de sua aplicação prática, parecendo razoável sacramentar a natureza de propriedade fiduciária dos créditos cedidos fiduciariamente – excluídos, portanto, dos efeitos da recuperação judicial – contudo, analisar de forma casuística o impacto da manutenção da trava bancária em sua integralidade.

A modulação dos percentuais dos créditos cedidos fiduciariamente parece atender o devedor, assim como a instituição financeira que irá manter a higidez de sua garantia, assim como as características iniciais do contrato, não se submetendo aos efeitos da recuperação judicial.

Isabela Dunaev – Advogada com 06 anos de experiência na área empresarial, formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especializada em recuperação judicial e falências, com LL.M em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pós-graduação pela INSOL International – The Foundation Certificate in International

[1]  Nesse sentido: Resp nº 1.933.995/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Data do Julgamento: 25/11/2021 “RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. QUESTÃO PREJUDICADA. PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. CRÉDITOS GARANTIDOS POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM IMÓVEL DE TERCEIRO. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO AFASTA A INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 49, § 3º, DA LFRE. PRECEDENTE. EXTRACONCURSALIDADE DO CRÉDITO GARANTIDO POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA QUE SE LIMITA AO VALOR DO BEM DADO EM GARANTIA. RESTABELECIMENTO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS DECLARADAS NULAS. (…) 5. A extraconcursalidade do crédito acobertado por alienação fiduciária limita-se ao valor do bem dado em garantia, sobre o qual se estabelece a propriedade resolúvel. Eventual saldo devedor que extrapole tal limite deve ser habilitado na classe dos quirografários. Precedente.”  

[2]  Art. 49. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

[3] Art. 6º § 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

[4] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[5] Nesse sentido: AgInt nos EDcl no REsp n. 1.680.456/SE, relator Ministro Ricardo Villas Boas Cuéva, Terceira Turma, julgado em 30/8/2021, DJe  3/9/2021; REsp 1758746 / GO, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma, julgado em 25/09/2018.

[6] Nesse sentido: Resp n. 1.758.746/GO, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma. julgado em 25/09/2018. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.680.456/SE, relator Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, Terceira Turma, julgado em 30/8/2021, DJe de 3/9/2021. 

[7] SCALZILLI, João P.; SPINELLI, Luis F.; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência: Teoria é Prática na Lei 11.101/2005. Grupo Almedina (Portugal), 2023. P. 617/618.

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