Do reconhecimento do voto abusivo ante a resistência negocial do credor bancário 

Cláusula de Vencimento Antecipado e de Compensação na Recuperação Judicial – Operações de Derivativos e Compromissadas – Art. 193-A da Lei nº 11.101/2005
08/11/2023
A Sujeição (ou não) de Sociedade Profissional à Lei 11.101/2005
05/02/2024
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Autora: Ana Vitória Crespani – 

 A lei 11.101/2005 era silente quanto às condutas que poderiam caracterizar abuso de voto e justificar a sua desconsideração. Nesse sentido, a Lei 14.112/2020 trouxe a inclusão do artigo 39 § 6º, que restringiu apreciação pelo juízo da abusividade do voto dos credores, na medida em que este só pode ser reconhecido quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita. Houve, portanto, inequívoca intenção do legislador em reduzir a amplitude das teses adotadas para impor restrições ao direito de voto do credor. 

 

Não obstante a nova dicção legal, o fato de ser o voto um direito que não se pode afastar do credor não significa dizer que esse pode exercê-lo como bem entender, podendo o juiz desconsiderar o voto em razão de abuso de direito, especialmente quando verificado que credores que detém créditos significativos, em especial as instituições financeiras, adotaram postura pouco colaborativa durante o ato assemblear, de modo que reprovação do plano reflete demonstração inequívoca de não colaboração com os objetivos sociais da recuperação das empresas, priorizando seus interesses particulares, sem quaisquer justificativas jurídicas ou econômicas, em detrimento de todos os demais interesses sociais e públicos relacionados à manutenção da atividade empresarial saudável. 

 

Essa é a recentíssima decisão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que acertadamente homologou o PRJ de uma empresa de logística, afastando o voto considerado abusivo do único credor na classe II, em precedente que representa uma substancial mudança na maneira como o Poder Judiciário vem interpretando o tema. Vejamos a ementa:

                          

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. Homologação do plano. Nulidade de voto. Ausência de racionalidade econômica e interesse em negociar. Voto meramente emulativo. §6º do art. 39 da LRF. Prevalência do princípio da preservação da empresa. Art. 47 da LRF. Doutrina e precedentes. Supressão de garantias. Previsão não aprovada pela decisão agravada. Ausência de interesse recursal. Compensação genérica de créditos. Impossibilidade. Potencial violação à paridade de credores. Precedentes. RECURSO PROVIDO EM PARTE, NA PARTE CONHECIDA, PREJUDICADA A ANÁLISE DO AGRAVO INTERNO.[1]

 

Este recurso direcionado ao TJSP que ensejou esse precedente contou com um parecer jurídico do Cássio Cavalli que, analisando os fatos específicos, defendeu que “O voto exercido pelo Banco reúne diversos indícios característicos do exercício abusivo de voto por oportunismo do credor, o interesse do voto não pode ser assim considerado individualmente (…) o interesse de credor não se limita ao aumento da satisfação individual de seu crédito, mas ao aumento da satisfação coletiva do crédito no procedimento recuperacional por meio da maximização do valor dos ativos da empresa devedora”.

 

Para melhor compreensão do tema aqui examinado, faz-se necessário entender que na negociação recuperacional atribui-se poder individual de voto aos credores para que, reunidos em assembleia, deliberem coletivamente sobre o Plano de Recuperação Judicial apresentado. Durante o conclave, são propostas alterações para que os stakeholders negociem de forma satisfatória, harmonizando o interesse individual do credor com o interesse da coletividade de credores, vez que todos se beneficiarão em igual proporção da maximização do valor da empresa. 

 

Por isso, a autonomia privada dos credores se desenvolve tão somente dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade, critérios aferíveis pela finalidade da existência do referido direito, devendo também ser considerado o seu comportamento ao longo do processo de negociação. Assim, na situação em que um credor bancário domina a deliberação de forma absoluta, é imprescindível que esteja disposto a negociar com boa fé para obtenção de melhores resultados para a satisfação de seu crédito, pois, caso contrário o seu voto tem poder de reprovar o plano, razão pela qual as empresas em recuperação judicial se veem compelidas a ceder aos interesses dos bancos.

 

Por óbvio, os credores bancários não estão obrigados a aceitar a proposta que lhes foi ofertada, no entanto, é inválida a manifestação de vontade quando demonstrada a absoluta resistência injustificada, bem como a conduta individualista e irracional para negociar, gerando um ambiente conturbado em muitas assembleias, de modo que enseja a declaração de nulidade do voto e, consequentemente, este deixa de ser computado e o respectivo crédito excluído da base de cálculo.

 

Portanto, é indicativo de voto meramente vingativo quando um credor do setor bancário, que possui valor expressivo de crédito, vota de forma a inviabilizar a recuperação, como um mecanismo de pressão desproporcional, pois, embora as condições do plano não sejam aquelas que ele gostaria de obter, o cenário da falência é bem pior e destoa do princípio basilar da proteção da empresa, esculpido no artigo 47 da LREF. 

 

Nesse sentido, Erasmo Valladão A. E. N. França e Marcelo Vieira Von Adamek elucidam que: Mesmo que um credor persiga seu interesse de credor concursal, a forma de exercício do seu direito ainda pode exceder os limites impostos pela boa-fé como, para ilustrar, se um credor capaz de determinar sozinho o resultado da deliberação na sua classe rejeita um plano e prefere a falência apenas pela perspectiva de receber seu crédito antes.[2]

 

Em que pese o tema ser extremamente controvertido, dotado de características muito peculiares, o entendimento sedimentado no STJ é de que o magistrado deve agir com sensibilidade, adotando como principal referência o princípio da preservação da empresa, sendo que o abuso do direito de voto estaria presente quando um credor por dominar a deliberação de sua classe de forma absoluta, em razão do montante do seu crédito, se sobrepõe àquilo que parece ser o interesse da coletividade de credores, ao votar contra o PRJ. Nesse sentido o aresto do Min. Luís Felipe Salomão:

 

“Visando evitar eventual abuso do direito de voto, justamente no momento de superação de crise, é que deve agir o magistrado com sensibilidade na verificação dos requisitos do cram down, preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores”.[3]

 

Assim, para evitar-se a anulação do voto, recomenda-se que o credor bancário antecipe-se, comprovando perante o juízo sua indispensável predisposição a negociar com o devedor, bem como a racionalidade econômica do seu voto, pois não parece justo que a postura intransigente do credor bancário suprima possível interesse divergente da coletividade de credores. Nessa mesma linha, Marcelo Barbosa Sacramone leciona brilhantemente, que: 

“Entre as situações que podem indicar que o voto extrapolou o poder conferido ao credor e que exigirão avaliação mais cuidadosa podem-se apontar: a indisponibilidade de negociar as condições de pagamento e a irracionalidade econômica. Diante da dificuldade da demonstração da má-fé pela parte adversa, a existência dessas situações poderá permitir a inversão do ônus da prova de modo que o votante esclareça os motivos ou seu raciocínio por ocasião do voto”.[4] 


           Considerando o entendimento doutrinário e jurisprudencial em várias searas e a necessária racionalidade econômica e matemática do voto, acertado o entendimento do TJSP, de modo que espera-se  uma mudança de postura do setor bancário no que concerne ao seu exercício de voto no ato assemblear, bem como a adoção de parâmetros consolidados e uniformizados para configurar a abusividade, a fim de mitigar danos causados por credores financeiros soberanos na AGC, os quais detêm poder de alterar o futuro de toda coletividade.

 

[1] Agravo de Instrumento nº 2180329-07.2022.8.26.0000

[2] Comentários à Lei de Recuperação de Empresas / Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, fls. 265. 5 Idem, fls. 267.

[3] REsp n. 1.337.989/SP, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 8/5/2018, DJe 4/6/2018)

[4] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2º Edição, Ed. Saraiva, 2021. P. 220.

Ana Vitória Crespani – Acadêmica de direito, cursando o 9° semestre, Atuando na área de Recuperação Judicial, Empresarial e Contencioso Cível,  Membro da Comissão de Estudos de Direito Falimentar e RJ da OAB,  Entusiasta nos estudos na área de insolvência cível, Oradora da CAEMP (Competição de Arbitragem de Empresarial).

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