A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Falência de Sociedade Empresária por meio de Incidente Processual

Negócios Jurídicos Processuais Aplicados à Recuperação Judicial
18/12/2018
Os Desafios da Mulher na Revolução Digital – Direito e Tecnologia
08/03/2019
Negócios Jurídicos Processuais Aplicados à Recuperação Judicial
18/12/2018
Os Desafios da Mulher na Revolução Digital – Direito e Tecnologia
08/03/2019

Por Ricardo Pires 

  1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho dedica-se ao estudo da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Falência de Sociedade Empresária, sob a luz do Código Processual Civil brasileiro de 2015.

Busca-se neste artigo científico discutir a responsabilização dos sócios da empresa, para que respondam com seu patrimônio pessoal, em casos de cometimento de ilícitos e desvios de conduta dentro do bojo do processo falimentar.

Para tanto, sabemos que a livre iniciativa é consagrada em nossa Constituição Federal em seu art. 1º, inciso IV[1], demonstrando a importância que lhe foi dada pela Assembleia Constituinte de 1988.

Em um contexto amplificado, a livre iniciativa pode ser entendida como o conjunto ordenado de energias do homem voltadas a um fim econômico específico, daí, portanto, abarcada a atividade empresarial, inegável força motriz para o desenvolvimento de uma nação.

Para se conferir segurança jurídica às pessoas dispostas a atuarem como empresários, o ordenamento jurídico brasileiro tratou de personificar a empresa, dando-lhe “vida” à parte da pessoa do empresário – dissociando-a de fato. Tal instituto é conhecido como personalidade jurídica e será tratada neste artigo em momento oportuno.

De introito, faz-se necessário se ter em mente que a atividade empresarial é regida pelo ordenamento jurídico por um conglomerado de leis e a atuação de seus sócios (em suma), enquanto lícitas, são protegidas pelo legislador, a fim de motivar o desenvolvimento econômico-financeiro e social do país.

Porém, não raras às vezes os empresários cometem ilícitos no exercício da atividade de empresa, tendo ameaçada tal proteção, em razão do legislador ter previsto igualmente nesses casos a possibilidade de afetação do patrimônio pessoal dos sócios pelos credores da sociedade empresária.

Trata-se, portanto, de exceção à regra, porém de permissivo jurídico criado para evitar que àqueles credores não sejam lesados por atos dos empresários escusos à administração escorreita da empresa.

Dentro do arcabouço jurídico brasileiro, podemos citar diversos dispositivos que tratam da matéria em voga, como, por exemplo, o art. 50, do Código Civil, art. 130, do Código Tributário Nacional, art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, art. 4º da Lei de Crimes Ambientais, art. 34, da Lei n. 12.529 (Infrações da Ordem Econômica) etc., inclusive no que tange às relações do Direito do Trabalho, por conta da aplicação subsidiária do CPC em casos omissos (art. 769, CLT).

À obviedade, a admissão da desconsideração da personalidade jurídica deve ser considerada a partir da estrita observância ao contraditório e à ampla defesa, carecendo de prova robusta e incontroversa o ato de cometimento de ilícito pelo agente empresário.

Assim, didaticamente, este trabalho foi dividido em quatro partes, iniciando-se por esta breve explanação introdutória, a fim de balizar os demais tópicos e contextualizar o tema.

No item dois, trataremos do conceito da personalidade jurídica e da limitação patrimonial conferida pelo direito brasileiro, cuidando de esposar, de maneira perfunctória, quais os limites existentes àqueles que desempenham tal atividade.

Seguindo esse raciocínio, no item dois ponto um, traçaremos um breve histórico acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e, na sequência, no item dois ponto dois, falaremos efetivamente sobre as nuances da desconsideração em si, sob a égide do Código de Processo Civil de 2015.

De forma consectária, nos itens dois ponto três e dois ponto quatro, abordaremos as correntes doutrinárias sobre a desconsideração da personalidade jurídica, mormente sob o prisma das duas teorias mais conhecidas e aceitas pelos juristas, as chamadas Teoria Maior e Teoria Menor.

Seguindo essa toada, trataremos no item três especificamente sobre a desconsideração da personalidade jurídica na falência, demonstrando os gatilhos para sua ocorrência e seus efeitos jurídicos.

Por fim, no item quatro, passaremos às nossas conclusões e considerações finais a respeito do tema proposto.

  1. PERSONALIDADE JURÍDICA

Antes de adentrarmos especificamente nos estudos acerca da desconsideração da personalidade jurídica, impende-nos conceituar o que vem a ser a pessoa jurídica, que possui o condão de limitar seu patrimônio às suas atividades empresariais.

O estudo das pessoas jurídicas começa pelo Direito Romano, embora a noção nele havida de pessoa jurídica seja bastante embrionária.

A expressão pessoa jurídica só veio a ser utilizada no início do século XIX, pelo alemão Helse, em substituição a outras, tais como pessoa moral, pessoa mística etc. Ganhou popularidade pela obra de Savigny. Apesar disso, alguns ordenamentos continuam a não empregar o termo pessoa jurídica. Neste rol, podemos citar Portugal (pessoa coletiva) e França (personne morale).[2]

Poderíamos defini-la simplesmente como entidades criadas para a realização de um fim e reconhecidas pela ordem jurídica como pessoas, sujeitos de direitos e deveres.[3]

Atemporal é a lição de Rubens Requião, que a conceitua da seguinte forma:

Entende-se por pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas que deram lugar ao seu nascimento; pelo contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Por tal razão, as pessoas jurídicas têm nome particular, como as pessoas físicas, domicílio e nacionalidade; podem estar em juízo, como autoras ou como rés, sem que isso se reflita na pessoa daqueles que a constituíram. Finalmente, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não se reflete na estrutura das pessoas jurídicas, podendo, assim, variar as pessoas físicas que lhe deram origem, sem que esse fato incida no seu organismo. É o que acontece com as sociedades institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.[4]

Existem inúmeras teorias para explicar a natureza das pessoas jurídicas, contudo, ficaremos adstritos a analisar a PJ sobre outra ótica, essa um pouco mais prática, para que o objetivo deste trabalho seja alcançado.

Assim, tendo em vista que a atividade empresarial importa grande risco e que a pessoa física por trás da empresa não poderia assumir tal risco, salutar se fez a proteção patrimonial dada à pessoa jurídica, que limita essa responsabilidade ao patrimônio da empresa.

Importante ressaltar, porém, que a responsabilidade jurídica limitada não trata-se de regra sem exceções, pois existem pessoas jurídicas que não se limitam.

Contudo, em que pese existam outras espécies de sociedades, constata-se que em sua grande maioria as empresas são de fato limitadas e, por isso, este trabalho irá cingir-se nelas.

Embora exista tal proteção, tem se verificado na prática, com considerável ocorrência, a utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles previstos pela legislação e por seus contratos sociais, sendo que alguns empresários valem-se desta autonomia patrimonial para praticar fraudes e abusos de direito, em detrimento de direitos de terceiros.

Por isso, mais salutar ainda se fez o surgimento da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, com o intuito genuíno de evitar que indivíduos mal intencionados se escondessem por detrás da estrutura da empresa, blindando seu patrimônio em prejuízo de seus credores.

Passemos a uma breve explanação do surgimento da desconsideração, sob o enfoque histórico e social.

2.1. BREVE HISTÓRICO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

O direito inglês é mencionado como tendo sido o precursor da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com o famoso caso Salomon v. Salomon & Com, em 1987.

Oksandro Gonçalves traz importante contribuição para o entendimento da evolução histórica do instituto:

O estudo dos sistemas jurídicos segundo a metodologia oferecida pelo Direito comparado possibilita sintetizar as contribuições para a feição atual da teoria da desconsideração.

Por sua origem no Direito anglo-americano, ela é conhecida como disregard doctrine, extraindo-se do Direito inglês o exemplo clássico: o caso Salomon & Salomon.

Se no Direito anglo-americano são encontradas as primeiras manifestações da teoria da desconsideração, no Direito alemão ela é sistematizada e consolidada, tomando o nome de Durchgriff der juristichen Personen, destacando-se a obra de Roll Serick, mais estudioso do tema e que definiu as bases da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

No Direito francês, destaca-se a positivação do instituto da desconsideração, em especial quanto à sua possibilidade na falência e na concordata.

Já no Direito italiano destaca-se a obra de Piero Verrucolli, com especial enfoque à teoria da desconsideração nas sociedades de capitais.

Finalizando, o estudo do Direito português demonstra o esforço dos doutrinadores para disseminar a teoria da desconsideração e implementar sua utilização.[5]

No Brasil, o primeiro jurista brasileiro a tratar do assunto foi o professor Rubens Requião, citado em linhas volvidas, e que transcreveu as seguintes observações de Rolf Serik sobre o tema:

A disregard doctrine aparece como algo mais do que um simples dispositivo do Direito americano de sociedade. É algo que aparece como consequência de uma expressão estrutural da sociedade. E, por isso, em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito.

Diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos.[6]

Embora Requião seja um expoente sobre o tema, outros juristas importantes como Fábio Konder Comparato, José Lamartine Corrêa de Oliveira e Marçal Justen Filho também contribuíram de forma bastante importante para a evolução do assunto no Brasil.

Para se ter uma ideia de como Requião estava à frente de seu tempo, somente em 1990 com o advento do Código de Defesa do Consumidor que surgiu em nosso ordenamento jurídico o primeiro dispositivo legal tratando da matéria (art. 28, CDC[7]).

Assim também se deu com o Código Civil de 2002, editado sob a coordenação do jurista Miguel Reale, o códex consagrou expressamente em seu art. 50, in verbis:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Dessa feita, não se limitando aos artigos supracitados, surge em nosso país ferramentas aptas a evitar o uso desvirtuado da pessoa jurídica e coibir abusos de direito e fraudes contra terceiros envolvidos em relações jurídicas comuns.

2.2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Segundo a definição do ilustre professor Gilberto Gomes Bruschi[8], a desconsideração da personalidade jurídica pode ser conceituada como um meio de repressão à frustração da atividade executiva, caracterizado pela decretação de inoponibilidade (ineficácia relativa) do limite patrimonial da pessoa jurídica, permitindo que sejam atingidos os bens de seus sócios, ex-sócios, acionistas, ex-acionistas, administradores, ex-administradores e sociedades do mesmo grupo econômico; ou, ainda, que sejam atingidos os bens de pessoa jurídica por obrigações contraídas por eles, no caso da chamada “desconsideração inversa da personalidade jurídica”.

O art. 790, do Código de Processo Civil, estabelece que “ficam sujeitos à execução os bens do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”.

Importante ressaltar que tal desconsideração não se trata de hipótese de extinção, liquidação ou dissolução da pessoa jurídica (diferentemente do que ocorre na dissolução de sociedade e na falência, esta que veremos mais adiante).

Desse modo, na ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica, a sociedade empresária continua a existir, sendo que apenas seu limite patrimonial há de ser desconsiderado, de forma excepcional e episódica.

Após o advento do novo Código de Processo Civil, a lacuna em relação à disciplina processual da desconsideração da personalidade jurídica foi resolvida, sendo que, hodiernamente, não há que se falar em desconsideração senão observado o procedimento instituído pelo art. 133 e seguintes, do CPC.

A criação do sobredito incidente é, de veras, reflexo da importância dado pelo novel códex ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

Quanto ao seu cabimento, vale dizer, diante desse quadro normativo, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é cabível praticamente em todos os processos que veiculem pretensões condenatórias e executivas, tanto perante a Justiça Comum, quanto perante as Justiças Especializadas (BRUSCHI, Gilberto Gomes. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016).

De mais a mais, cabe-se a instauração do incidente tanto na fase de conhecimento, quanto na fase de cumprimento de sentença ou na execução de título extrajudicial.

Assim, tais premissas dariam azo ao entendimento de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica seria cabível também no processo de falência, respeitada, contudo, a vis attractiva do juízo falimentar, como veremos no item 3.

2.3. TEORIA MAIOR

A teoria maior, que corresponde à versão tradicional do instituto, levando em consideração aspectos subjetivos (como o desvio de finalidade e o abuso de direito).[9]

Em geral esta teoria é a mais acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro, exigindo o desvio de finalidade social ou a confusão patrimonial para a desconsideração.

Exemplos clássicos é a confusão de caixa da empresa com contas particulares dos sócios, bem como avais cruzados etc.

No que tange aos permissivos legais, podemos citar como corolários à aplicação da teoria maior os artigos 50, do CC, 28, do CDC, 34, da Lei de Defesa da Ordem Econômica, 14, da Lei Anticorrupção, dentre outros.

A aplicação da teoria maior é condicionada, além da insuficiência patrimonial, à caracterização da ocorrência de (i) abuso de direito; (ii) excesso de poder; (iii) infração da lei; (iv) fato ou ato ilícito; (v) violação do estatuto ou contrato social; (vi) falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração; (vii) desvio de finalidade; ou (viii) confusão patrimonial.[10]

2.4. TEORIA MENOR

A teoria menor, segundo a qual, o aspecto subjetivo seria irrelevante, bastando a mera insuficiência do patrimônio social frente à satisfação de determinada obrigação para ensejar a decretação da desconsideração e a responsabilização de bens dos sócios.[11]

Possui aplicação em menor escala no ordenamento jurídico brasileiro, podendo ser citada como exemplo a hipótese prevista no § 5º, do art. 28, do CDC, veja-se:

Art. 28. (…) § 5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Ainda a título exemplificativo, podemos citar a hipótese encontrada no art. 4º da Lei de Defesa ao Meio Ambiente (Lei n. 9.605/1998), in verbis:

Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Por derradeiro, existem ainda outras hipóteses de responsabilização e afetação do patrimônio do sócio na legislação trabalhista (art. 2º, § 2º, da CLT) e na legislação tributária (art. 135, do CTN), porém, na ocorrência destes, existe discussão doutrinária se figurariam igualmente como hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica ou não.

  1. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FALÊNCIA POR MEIO DE INCIDENTE PROCESSUAL

Sem embargo do quanto alinhavado até o momento, resta clarividente que a desconsideração da personalidade jurídica é possível no bojo do processo de falência, analisada sob o aspecto jurídico-processual.

Resta-nos analisar, sob o mesmo aspecto jurídico processual, se a via escorreita seria a instauração de incidente ou ajuizamento de ação autônoma.

Em razão da universalidade do juízo falimentar, a competência para declarar a desconsideração da personalidade jurídica do falido será sempre do juízo onde tramita a falência, conforme entendimento jurisprudencial consolidado, senão vejamos:

DIREITO CIVIL E FALIMENTAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. FALÊNCIA DECRETADA. VIS ATTRACTIVA DO JUÍZO FALIMENTAR. NECESSIDADE DE HABILITAÇÃO DO CRÉDITO E REQUERIMENTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PERANTE O JUÍZO DA FALÊNCIA. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Nos termos do artigo 76 da Lei nº 11.101/2005, decretada a falência, ao juízo falimentar compete o conhecimento de todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo. 2. Decretada a falência, resta prejudicado eventual pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, devendo a habilitação do crédito e eventuais pedidos de preferência ou direcionamento da execução contra os sócios ser efetuado perante o juízo falimentar, sob pena de violação ao juízo universal da quebra e eventual frustração do pagamento aos demais credores. 3. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TJ-DF 07040722720178070000 DF 0704072-27.2017.8.07.0000, Relator: ALFEU MACHADO, Data de Julgamento: 01/03/2018, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 07/03/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada.) – grifamos.

Contudo, como explanado alhures, trata-se a desconsideração de fenômeno jurídico episódico, ficando seus efeitos adstritos ao processo falimentar.

Em verdade, a desconsideração decretada no processo falimentar não pode estender os seus efeitos para procedimento distinto, como é o caso dos embargos de terceiro. Isso se deve ao fato da desconsideração da personalidade jurídica ser relacionada a um fato específico, conforme esclarece Fábio Ulhôa Coelho (in Manual de direito comercial, 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 127):

A desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha a autonomia patrimonial desconsiderada continua válida, assim como válidos são todos os demais atos que praticou. A separação patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele específico ato objeto da fraude. (…) Por apenas suspender a eficácia do ato constitutivo, no episódio sobre o qual recai o julgamento, sem invalidá-lo, a teoria da desconsideração preserva a empresa, que não será necessariamente atingida por ato fraudulento de um de seus sócios, resguardando-se, desta forma, os demais interesses que gravitam ao seu redor.

Dessa forma, podemos entender que a desconsideração só produz efeito com relação a ato específico objeto da falência, e não a todos os atos da empresa.

Assim, não pode a parte adversa valer-se da desconsideração realizada em processo falimentar para atingir os bens dos sócios em demanda diversa, mormente em se tratando de crédito distinto do objeto da declaração.

Com relação ao ponto nevrálgico deste trabalho e também ventilado em linhas volvidas, seria a necessidade de instauração de incidente processual ou a propositura de nova demanda.

Em recente aresto, vê-se que a jurisprudência caminha no sentido de instauração de pedido incidental, veja-se:

FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DEFERIMENTO SEM PRÉVIA OITIVA DOS PREJUDICADOS. AUSÊNCIA DE AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ANULAÇÃO DA DECISÃO. RECURSO PROVIDO. Desconsideração da personalidade jurídica da falida para alcançar sócios e ex-sócios. Extensão dos efeitos da quebra. Deferimento sem prévia oitiva dos prejudicados. Ausência de ampla defesa e contraditório. Impossibilidade. Pretendendo o Administrador Judicial a extensão dos efeitos da quebra aos sócios e ex-sócios da empresa, diante da presença dos requisitos do art. 50, do Código Civil em vigor (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), deve apresentar o pedido incidental ao D. Juízo que preside a falência, que deverá, por sua vez, providenciar a citação dos réus para que apresentem defesa e as provas que possuam para impugnar o pedido. Decisão revogada. Recurso provido. (TJ-SP 21936508520178260000 SP 2193650-85.2017.8.26.0000, Relator: Carlos Alberto Garbi, Data de Julgamento: 11/12/2017, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 11/12/2017) – grifamos.

Não obstante ao assentado pela 2ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Fábio Ulhoa Coelho[12] defende que:

No meu modo de entender a questão, a desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser decretada em ação de conhecimento de que sejam réus aqueles que manipularam fraudulentamente a autonomia patrimonial, para que, em caso de procedência, haja título executivo para fundamentar sua responsabilização. Tem-se, contudo, admitido a aplicação da teoria da desconsideração como incidente em execução, incluindo a execução concursal.

O Desembargador Pereira Calças, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 547.780-4/2-00, assim entendeu sobre o tema:

A jurisprudência desta Câmara Especializada perfilha o entendimento de que, apesar de ser admissível a aplicação da ‘disregard doctrine’ de forma incidental no processo de falência, com base nos requisitos do art. 50 do Código Civil, não se pode deixar de observar a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal (…).

Contudo, há de se destacar entendimento diverso e igualmente relevante, esposado pelo Desembargador Paulo Pastore Filho, no que tange à abertura do contraditório:

A desconsideração da personalidade jurídica (…) não se dá (…) quando o juiz autoriza a expedição de ofícios para a investigação da existência de patrimônio dos sócios da falida, mas sim quando reconhecida a responsabilidade por fraude à lei ou ao contrato, bens venham a ser sequestrados ou tornados indisponíveis, para os fins do estabelecido no art. 6º, parágrafo único, da Lei n. 7.661/45 e art. 82, § 2º, da Lei n. 11.101/2005. Dessa forma, não tem a menor relevância a falta de manifestação dos sócios quanto à investigação de seus respectivos patrimônios, porque eles terão a oportunidade de defesa, em ação de responsabilidade prevista no art. 6º da Lei n. 7.661/45 e art. 82 da Lei n. 11.101/2005 que, obrigatoriamente deverá ser proposta para que os bens daqueles venham a integrar a massa falida (Agravo de Instrumento n. 366.267-4/2-00).

Sobre o tema, especificamente ao tratar do art. 82 e 130 da LRE, Manoel Justino Bezerra Filho, assevera que:

Portanto, apurando-se que os diretores, controladores, administradores, praticaram atos lesivos ao interesse dos credores, será proposta ação de responsabilidade pelo rito ordinário, estando legitimados também para o polo passivo as pessoas mencionadas, sejam ou não sócias do falido.

A propósito, relembre-se que há casos de responsabilização nos quais o juiz poderá optar pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para mandar arrecadar o patrimônio das pessoas que seriam legitimadas para a ação. No entanto, embora a desconsideração esteja há bastante disseminada em nosso meio jurídico, sua aplicação ainda está engatinhando em termos processuais, não havendo pacificação sobre como aplica-la, matéria que com o decorrer do tempo encontrará o devido tratamento por nossos Tribunais. No entanto, é intuitivo que a possibilidade de aplicação dessa teoria, em vez de ajuizamento de ação de responsabilidade, é, mais que possível, bastante provável (BEZZERA FILHO, Manoel Justino, Lei de recuperação de empresas e falência : Lei 11.101/2005 : comentada artigo por artigo. 12. Ed. rev. Atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 247).

Apresentada a problemática, afeta ao processo civil, passemos às conclusões.

  1. CONCLUSÕES

A nosso ver, sobretudo com espeque no art. 4º, do Código de Processo Civil, que diz: “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”, ou seja, direito à celeridade e efetividade, além do princípio da economia processual, torna-se plenamente possível a desconsideração da personalidade jurídica no próprio processo de falência por meio de incidente processual.

De toda sorte, podemos considerar ainda que ao admitir tal caminho processual, não se nega à parte atacada que faça uso do contraditório e da ampla defesa, princípios igualmente protegidos pela nossa Constituição Federal e consagrados pelo Código de 2015.

Portanto, haja vista que a instauração de incidente processual previsto na novel legislação não retira direitos basilares dos sócios, ex-sócios, acionistas, ex-acionistas e demais agentes empresários da falida, o caminho escorreito, em homenagem aos já citados princípios processuais seria, inegavelmente, por consectário lógico-processual, o do pedido incidental no próprio bojo da falência.

[1] CF/88. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…)

[2] FIUZA, Cesar. Direito Civil – Curso Completo. 2. Ed. em e-book baseada na 18 ed. impressa rev. Atual. e ampl., 2016, p. 96.

[3] FIUZA, Cesar. Direito Civil – Curso Completo. 2. Ed. em e-book baseada na 18 ed. impressa rev. Atual e ampl., 2016, p. 96.

[4] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, São Paulo: Forense, 1998, p. 204.

[5] GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 33.

[6] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 410, 1969, p.14.

[7] CDC. Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[8] BRUSCHI, Gilberto Gomes. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 138.

[9] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial de acordo com o novo código civil e alterações da LSA. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 40 e seguintes.

[10] Nesse sentido, Enunciado 7 do CEJ/CJF sobre o art. 50 do CC/2002.

[11] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial de acordo com o novo código civil e alterações da LSA. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 40 e seguintes.

[12] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas – 11. Ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 298

 

Ricardo Pires  é Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC Campinas (2017 – 2018), Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC Campinas (2009 – 2013), membro efetivo da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial, Comissão de Direito Processual Civil e Defensor Dativo da Comissão de Ética e Disciplina, todas da OAB/SP, 3ª Subseção, de Campinas/SP (triênio 2016/2018), Advogado falimentar e empresarial, Sócio do escritório Bismarchi, Casarotto e Peccinin Sociedade de Advogados.

 

Pular para o conteúdo