Teoria da Imprevisão aplicada à Recuperação Judicial

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*Fernando Pompeu Luccas

Fonte: Valor Econômico

Muito conhecida no universo jurídico e também sempre debatida sobre o aspecto da previsibilidade ou não do acontecimento, a Teoria da Imprevisão vem sendo bastante discutida nesses tempos de pandemia. 

Diante do cenário que estamos experimentando nos últimos meses, somado às incertezas, inclusive, sobre quando tudo isso passará, parece-nos adequado olharmos as relações contratuais pela ótica da imprevisibilidade da situação atual, sendo os caminhos do diálogo e da negociação os mais indicados para os contratantes. 

No entanto, quando tais caminhos não levam a uma convergência, pode o Judiciário, com o uso da Teoria da Imprevisão, buscar o reequilíbrio das relações, como forma de ajustá-las e se alcançar o melhor ponto possível para as partes. 

Tal posicionamento do Judiciário se mostra admitido quando nos deparamos com relações comuns. Porém, em um cenário de Recuperação Judicial, poder-se-ia admitir o uso da referida teoria? 

Muito se discute sobre as características do Processo de Recuperação, principalmente no tocante às Assembleias de Credores – que detém a decisão sobre a aprovação ou rejeição do plano – mais especificamente se elas têm soberania ou autonomia de suas decisões. 

Analisando a fundo esse ponto, em se considerando o controle de legalidade que o Judiciário deve sempre fazer das decisões assembleares, mostra-se mais razoável se falar em autonomia e não soberania, pois não é qualquer decisão assemblear que poderá ter a sua chancela. 

Na mesma linha então, no que diz respeito ao uso da Teoria da Imprevisão, o que se pode trazer para reflexão é a possibilidade do Judiciário flexibilizar pontos econômicos das decisões assembleares, por conta de desequilíbrio frente a fato absolutamente anormal e imprevisível. 

Nesse ponto, em observância às particularidades do processo de Recuperação Judicial (principalmente sobre os aspectos econômicos), bem como se considerando a jurisprudência consolidada sobre a Justiça não ter que se manifestar a respeito de aspectos negociais do plano, há que se ter extremo cuidado na admissão do uso da Teoria da Imprevisão, principalmente porque um dos pontos que mais se deve prezar, para assuntos dessa área, é a segurança jurídica. 

Porém, em determinados e pontuais casos concretos, nos quais as classes mais hipossuficientes estejam quitadas ou se mantendo seus pagamentos incólumes, bem como em se percebendo que eventual modificação no plano pode ser mínima visando o equilíbrio (como apenas uma breve suspensão, por exemplo), parece-nos adequado admitir com que o Judiciário possa ao menos olhar a relação entre as partes particulares – devedor e credores – e intervir, de forma razoável, trazendo reequilíbrio. 

Usando-se esse exemplo da simples suspensão temporária, muitas vezes, na prática, é o que de fato acontecerá se o processo seguir a linha de marcação de assembleias para discussões de plano modificativo, talvez tendo impactos ainda bem menores no plano original do que essa alternativa das AGCs, que poderão postergar por mais tempo as discussões do que o eventual prazo de suspensão pleiteado.

Porém, aprofundando-nos um pouco mais na análise desses eventuais casos concretos, será sempre importante que, para o uso da Teoria da Imprevisão, o juiz observe se a devedora, de fato, sofreu consideráveis impactos na sua operação por conta da pandemia, bem como se os eventuais credores insurgentes também sofreram. 

Isso porque, por óbvio, sendo o cenário pandêmico para todos, se os dois lados estão sofrendo, o caminho será o diálogo e a decisão assemblear. 

Porém, se apenas um lado comprovou os impactos (nesse exemplo, a devedora), e o outro lado não comprovou (nesse exemplo, os credores insurgentes), parece-nos razoável admitir que o Estado Juiz possa interferir na relação (se tal intervenção for mínima e pontual, como uma suspensão temporária), trazendo o equilíbrio. 

Isso vale também para a situação inversa, na qual a devedora pode ter sua situação financeira melhorada por conta da pandemia (áreas específicas nas quais as demandas por produtos aumentaram, por exemplo). Nesses casos, pode-se também caber a discussão se a devedora deve, então, apresentar plano modificativo trazendo condições mais benéficas para o pagamento dos créditos.

No entanto, como dito, o que não se pode perder de vista é a importância da garantia da segurança jurídica em matéria de Insolvência, devendo-se, portanto, todas as reflexões que estão sendo postas à mesa agora, ser limitadas apenas para esse período caótico.

Dessa forma, nesse período totalmente sui generis no qual nos encontramos diante dessa pandemia global que nos assola, em que o Legislativo, o CNJ, os Tribunais de Justiça e vários institutos se movimentam em busca de caminhos possíveis, parece-nos fazer sentido também se pensar em mais esse. Cabe a reflexão. 

 

*Fernando Pompeu Luccas é Advogado, Administrador Judicial, Presidente da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB/Campinas, Sócio-Diretor da Brasil Trustee Administração Judicial e da Mangerona & Pompeu Advogados. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas (IBR), do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), do Instituto Brasileiro de Insolvência (IBAJUD), da International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals (INSOL) e do Turnaround Management Association (TMA). Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/Campinas, em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito/SP e em Recuperação de Empresas e Falências pela FADISP. Professor dos cursos de extensão e pós-graduação da Escola Paulista de Direito/SP e da FADISP. Professor convidado do Instituto Brasileiro de Insolvências (IBAJUD), do Mackenzie, da Faculdade Damásio de Jesus, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação – ESAMC.

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