Medida Provisória n. 881/2019 e o art. 19, § 8.º, da Lei n. 10.522/2002

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*Nida Saleh Hatoum

A Medida Provisória n. 881/2019 incluiu, no art. 19 da Lei n. 10.522/2002, que “Dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados e entidades federais e dá outras providências”, o § 8.º, com a seguinte redação: “Os órgãos do Poder Judiciário e as unidades da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderão, de comum acordo, realizar mutirões para análise do enquadramento de processos ou de recursos nas hipóteses previstas neste artigo, e realizar adequação procedimental com fundamento no disposto no art. 190 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”.

O dispositivo, portanto, autoriza que os órgãos do Poder Judiciário celebrem negócios jurídicos processuais com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos termos do art. 190 do CPC/2015, para a realização de mutirões ou alteração atinentes ao procedimento.

Para além de outras questões preocupantes constantes da Medida Provisória, essa, em especial, causa certa inquietação sobretudo se se considerar que o juiz (e aqui se encontram compreendidos todos os órgãos do Poder Judiciário), a despeito de participar como sujeito de alguns negócios processuais típicos, a exemplo do saneamento compartilhado (cf. art. 357, § 3.º) e da celebração de calendário processual (cf. art. 191), não é sujeito dos negócios jurídicos processuais atípicos, celebrados a partir da cláusula geral de negociação inserida no art. 190 do CPC/2015, mencionado expressamente pelo já referido § 8.º.

Cuida-se, a princípio, de interpretação literal do próprio art. 190, cujo caput prevê expressamente que as partes podem celebrar negócios processuais se preenchidos alguns requisitos e cujo parágrafo único estabelece que a atuação do juiz está adstrita ao controle de validade em hipóteses relativamente restritas. O art. 200, caput, do CPC, aliás, estabelece que os atos das partes (aí incluídos os negócios processuais) produzem efeitos imediatamente, condicionando somente a eficácia da desistência (que nem negócio processual é, a despeito de se tratar de ato processual) à homologação judicial, nos termos do parágrafo único.

O juiz pode, do que se extrai dos dispositivos do Código de Processo Civil pertinentes ao assunto, assim: (i) participar de alguns negócios processuais típicos como sujeito; (ii) controlar a validade do negócio processual em determinadas situações (art. 190, parágrafo único, do CPC/2015); e (iii) apenas aplicar o conteúdo do negócio processual celebrado pelas partes.

É verdade que o juiz deve modificar o procedimento adequando-o às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito (art. 139, VI, do CPC/2015), e é verdade, também, que a sua participação em negócios processuais típicos tende a viabilizar uma prestação jurisdicional mais adequada.

Parece temerária, contudo, a autorização para que o Poder Judiciário e a Fazenda Nacional celebrem negócios processuais com fundamento no art. 190 do CPC/2015, conquanto não seja o Poder Judiciário sujeito dessas específicas convenções processuais. E mais: além de possibilitar a celebração de negócios processuais atípicos pelo Poder Judiciário, o art. 19, § 8.º, da Lei n. 10.522/2002, com redação dada pela MP, exclui da negociação a parte que litiga com a Fazenda Pública, o que desvirtua completamente a finalidade do instituto, que é tornar o processo e o procedimento mais adequados à cada lide, de acordo com suas especificidades.

A intenção do dispositivo, por outro lado, ao que tudo indica, é oferecer à Fazenda Nacional ferramentas para o gerenciamento dos seus processos, sem qualquer participação da parte contrária.

O § 8.º, parece correto afirmar, viola o próprio art. 190 na medida em que suprime a manifestação de vontade (elemento nuclear do suporte fático dos negócios jurídicos em geral) de um dos verdadeiros sujeitos dos negócios jurídicos processuais atípicos, o que, repita-se, esvazia o propósito do instituto.

Isso não significa que a Fazenda Nacional não possa celebrar negócios processuais com esteio no art. 190. O parecer apresentado pela Comissão Mista da Medida Provisória n. 881/2019, divulgado no dia 11.07.2019, inclusive, recomenda a inserção de um § 9.º, o qual dispõe que “Sem prejuízo do disposto no § 8º, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional regulamentará a celebração de negócios jurídicos processuais em seu âmbito de atuação, inclusive na cobrança administrativa ou judicial da dívida ativa da União”.

É extremamente desejável que a Fazenda Pública, em todos os níveis, celebre negócios processuais com vistas a uma prestação jurisdicional mais justa, adequada e eficaz, com maior razão porque trata-se da maior litigante do país. A negociação, todavia, deve ocorrer com seu oponente, e não com o Poder Judiciário, sobretudo de modo exclusivo.

Nida Saleh Hatoum é advogada, e Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

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