A alienação de ativos e a sucessão na recuperação extrajudicial

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A alienação de ativos e a sucessão na recuperação extrajudicial[1]

Aline Mirna Barros Vieira[2]

 Ao analisar os índices de liquidez de uma empresa, o que se objetiva é confirmar se a empresa tem ou não capacidade de solver as suas obrigações nas datas estabelecidas, isto é, se possui dinheiro em caixa ou possui apenas bens e direitos. O inadimplemento se configura quando o pagamento de uma dívida líquida e certa não ocorre no vencimento mesmo dispondo do recurso; no entanto, a iliquidez se estabelece quando o inadimplemento temporário decorre da ausência de dinheiro em caixa, embora possua bens e direitos passíveis de alienação.

 

A Recuperação Extrajudicial é um instituto aplicável em situações em que se configurou o estado de crise econômico-financeiro temporário decorrente da iliquidez, oriunda dos negativos ou irregulares fluxos de caixa, em razão de causas internas ou externas da empresa. Consiste em um mecanismo que acelera os projetos de reestruturação dos entes empresariais, viabiliza a negociação com credores ou grupo de credores escolhido pelo devedor e, ainda, permite que o acordo seja imposto à minoria dissidente em pedido de homologação judicial.

 

Em razão das alterações promovidas pela Lei 14.112/2020, a Recuperação Extrajudicial passou a sujeitar, além dos credores com garantia real e quirografários, os credores trabalhistas representados pelo sindicato da categoria, mantendo-se a exclusão do credor tributário, proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, arrendador mercantil, proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio e de adiantamento a contrato de câmbio para exportação.

 

No que tange ao plano de Recuperação Extrajudicial, este é configurado antes do ajuizamento do pedido de homologação. Inicialmente, os credores convidados a participar do procedimento da recuperação extrajudicial devem apreciar a proposta feita pelo devedor e negociar melhores condições de quitação do débito ou algum benefício adicional. Oportuno ressaltar, que a proposta do devedor não pode estabelecer o pagamento antecipado dos créditos e nem o tratamento desfavorável aos credores não sujeitos (art. 161, § 2.º da Lei 11.101/2005).

 

Concomitantemente, o devedor deve especificar a forma como realizará a quitação do passivo sujeito à Recuperação Extrajudicial e pode se utilizar das sugestões, não taxativas, elencadas no art. 50 da Lei 11.101/2005. Destaque, por oportuno, para as sugestões contidas nos incisos XI e XVIII que tratam, respectivamente, da venda parcial dos bens e da venda integral da devedora / unidade produtiva isolada (UPI).

 

Diante da possibilidade de venda de bens do devedor para pagamento dos credores sujeitos ao procedimento da Recuperação Extrajudicial (Lei 11.101/2005), o art. 166 estabelece que a alienação judicial de bens do devedor (filiais ou de unidades produtivas isoladas) deverá ser realizada por meio das modalidades dispostas no art. 142, quais sejam: (i) leilão eletrônico, presencial ou híbrido; (ii) processo competitivo organizado por agente especializado e/ou (iii) qualquer outra modalidade aprovada nos termos da lei em análise.

 

O ponto “polêmico” a ser analisado relaciona-se à possibilidade ou não de sucessão nas obrigações do devedor pelo adquirente de bens alienados na Recuperação Extrajudicial, em razão do legislador não ter elucidado essa questão, mesmo diante da recente atualização promovida pela Lei 14.112/2020. Não há como afirmar se a intenção do legislador era manter o risco de sucessão ou se esqueceu de exclui-lo como o fez expressamente para as vendas ocorridas na recuperação judicial e na falência.

 

No entanto, fato é que alguns especialistas defendem a manutenção da sucessão, entendimento este de que discordo, porque inviabiliza o uso da Recuperação Extrajudicial como instrumento para a reestruturação financeira (como já ocorre) e afasta potenciais adquirentes.

 

Isto porque, ao analisar os artigos que se referem à alienação de ativos na Lei 11.101/2005, constata-se que o afastamento da sucessão pode ser reconhecida por decisão judicial, uma vez que as exigências podem ser atendidas e comprovadas também no âmbito da recuperação extrajudicial.

 

Assim, para que a alienação dos bens não acarrete a sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, é necessário que esta se realize por meio de uma das modalidades do art. 142, após a:

 

  • autorização judicial expressa (art. 66, caput e § 3.º);
  • concessão da recuperação judicial (art. 60, parágrafo único);
  • homologação do plano na recuperação extrajudicial (arts. 165 e 166); ou
  • juntada do auto de arrecadação nos autos da falência (art. 139 e 141, inciso II).

 

Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo não circulante, inclusive para os fins previstos no art. 67 desta Lei, salvo mediante autorização do juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores, se houver, com exceção daqueles previamente autorizados no plano de recuperação judicial. 

(…) § 3º  Desde que a alienação seja realizada com observância do disposto no § 1º do art. 141 e no art. 142 desta Lei, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista.

 

Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei.

(…) Parágrafo único: O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei. 

 

Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata o art. 142:

(…) II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.

 

Ressalte-se, ainda, que o disposto no art. 66-A da Lei 11.101/2005, dispõe que a alienação de bens pelo devedor ao adquirente de boa-fé, se realizada com autorização judicial ou prevista em plano de recuperação (judicial ou extrajudicial) aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz, após a consumação do negócio jurídico com o recebimento do pagamento pelo devedor. E, ainda que de forma subentendida, reforça o entendimento sobre a ausência de sucessão nas obrigações do devedor pelo adquirente de ativos no âmbito Recuperação Extrajudicial, o que contribui para a redução do risco nesse tipo de negócio jurídico.

 

Importante mencionar que diante da omissão constatada na Lei 11.101/2005, a ausência de sucessão pode ser reconhecida e declarada pelo juiz – de ofício ou a pedido da parte interessada –, com autorização dos arts. 4.º e 5.º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB), porque, expressamente, permitem ao juiz decidir com base na analogia, nos bons costumes e nos princípios gerais de direito, bem como, aplicar a lei atendendo aos fins sociais a que ela se destina e às exigência do bem comum, conforme os fundamentos abaixo:

 

  • atende aos princípios norteadores do instituto, tais como, a par conditio creditorum, a lealdade e a boa-fé e a preservação da empresa viável;
  • permite a aplicação a analogia dos arts. 60 parágrafo único e 141, inciso II, ambos da Lei 11.101/2005, vez que ambos os artigos referem-se a venda de ativos dentro de um procedimento de insolvência empresarial e fiscalizado pelo Poder Judiciário;
  • atende ao fim social e às exigências do bem comum, quando reforça a segurança jurídica da aquisição do ativo pelo arrematante, de que não será responsabilizado por nenhuma dívida do devedor além do pagamento do valor especificado no edital;
  • reforça a segurança jurídica e o respeito ao negócio jurídico ao afastar o risco de anulação ou ineficácia da alienação do ativo autorizada judicialmente ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial (art. 66-A da Lei 11.101/2005).

 

Finalmente, não resta dúvida de que a Recuperação Extrajudicial seja uma medida inovadora para a solução da crise econômico-financeira pontual suportada pelo devedor, que permite a este (i) convidar a espécie de crédito ou grupo de credores de mesma natureza que lhe convier para promover a reestruturação da dívida e (ii) requerer a simples homologação do acordo ou a imposição das condições aos credores dissidentes (observadas as exigências do art. 163 e parágrafos).

 

Além disso, consiste em um procedimento célere e de baixo custo, que não estigmatiza a empresa perante o mercado e os órgãos públicos e nem inviabiliza a obtenção de créditos e de investimentos como ocorre na recuperação judicial e, por fim, não acarreta a falência na hipótese de não homologação do plano. Constata-se, portanto, muitas vantagens.

 

No entanto, se as omissões mantidas pelo legislador, não forem apreciadas e corrigidas pelo Poder Judiciário, a utilização do instituto da Recuperação Extrajudicial não será incentivado diante da ausência de segurança jurídica nos negócios realizados em seu âmbito. E, consequentemente, manterá o incentivo ao uso indiscriminado da Recuperação Judicial.

Referência

Brasil. Decreto-Lei n.º 4657/1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 10 ago 2021.

Brasil. Lei n.º 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 10 ago 2021.

BRASIL. Lei n.º 14.112/2020, de 24 de dezembro de 2020. Altera as Leis nos 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, 10.522, de 19 de julho de 2002, e 8.929, de 22 de agosto de 1994, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14112.htm. Acesso em 10 ago 2021.

 

[1] Capítulo “Mulheres da Insolvência” publicado pela Editora Inbook: https://inbook.com.br/produtos/livros/mulheres-da-insolvencia/

 

[2] Advogada. Contadora. Mediadora e Conciliadora Judicial. Graduações em Direito e Ciências Contábeis. Pós-graduações em Direito Processual Civil, Direito Empresarial, Recuperação de Empresa e Falência, Direito Contratual, Governança, Gestão de Risco e Compliance e Lei Geral de Proteção de Dados (Faculdade Legale). MBAs em Gestão de Negócios e em Auditoria e Compliance. Membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB Campinas/SP.

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