Será que os contratos digitais possuem eficácia jurídica?

Artigo: O Olhar do Advogado Mediador
22/11/2016
Artigo – Um Novo Paradigma Cooperativo na Relação entre Fisco e Contribuintes
07/07/2017
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Por Valéria Reani, Advogada Especialista em Direito Digital e Compliance –

Para responder a pergunta que é título deste artigo, se faz necessário comentar sobre a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) que é um órgão subsidiário da Assembleia Geral. Desempenha uma função de relevo no desenvolvimento do quadro jurídico do comércio internacional, através da preparação de textos legislativos, para que os Estados os utilizem na modernização do direito do comércio internacional, e textos não legislativos, para que as partes os utilizem na negociação de suas transações comerciais.

Os textos legislativos da UNCITRAL abordam;

-a venda internacional de bens;

-a resolução de disputas comerciais internacionais, incluindo a arbitragem e a conciliação;

-o comércio eletrônico;

-a insolvência, incluindo a insolvência transfronteiriça;

-o transporte internacional de bens;

-os pagamentos internacionais, a aquisição e o desenvolvimento de infraestrutura;

-e títulos de crédito.

Os textos de caráter não legislativo incluem as regras de conduta nos procedimentos de arbitragem e de conciliação; notas sobre a organização e condução de procedimentos arbitrais; e guias jurídicos sobre contratos de construção industrial e de trocas comerciais.

É neste contexto que nos cumpre esclarecer categoricamente que os contratos digitais são válidos juridicamente e são tratados em norma internacional desde 1996, nominada como  a Lei Modelo da UNCITRAL, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral, na sigla em inglês)a qual afirma no Capítulo II – Aplicação de requisitos legais às mensagens de dados, em seu artigo 5º que:

Artigo 5º – Reconhecimento jurídico das mensagens de dados.

“Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de mensagem eletrônica.”(1)

 Portanto, não há que se questionar sua validade e eficácia. Importante ressaltar que os contratos digitais são considerados como “contratos atípicos”, ou seja aqueles que não possuem regulamentação específica “onde o fator preponderante é a liberdade de contratar e o princípio da autonomia da vontade, onde as partes devem acautelar-se na fixação das normas contratuais (cláusulas), desde que estas não contrariem os princípios gerais do direito (a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu, viver honestamente ), os bons costumes e as normas de ordem pública”(2).

No tocante ao e-commerce, faz-se necessário corroborar os comentários pertinentes de Renata Cattini Maluf Aguirre, em seu artigo “Relações de Consumo no Comércio Eletrônico do Entretenimento”:

“Com efeito, o que distingue a relação de consumo tradicional daquela que se efetua via Internet é exatamente o meio em que ela se trata e o documento em que se concretiza. O comércio eletrônico remodela uma série de noções, como território, tempo, espaço, identidade, publicidade e privacidade. Estamos vivenciando uma era de desumanização das relações, marcada pela impessoalidade e a falta de interação interpessoal; de generalização do instrumento contratual; de produção e comercialização massificadas; de ausência de fronteiras rígidas, aliado ao tempo virtual, que é imediato e atemporal ”(3).

É sabido que a tecnologia possibilita o desenvolvimento de novos modelos de negócios influenciando diretamente no ramo do comércio, desde os produtos, plataformas até os meios de pagamento. Tanto é verdade que organizações internacionais e diversos países têm repensado suas diretrizes e normas.

Desta feita, vale ressaltar, por exemplo, a Declaração de Bruxelas sobre Comércio e Internet (4), editada em fevereiro de 2016, por um grupo multidisciplinar com representantes dos direitos dos usuários da Internet, consumidores, novos empreendedores,  com o objetivo de incentivar um debate transparente e participativo sobre os acordos internacionais relacionados ao comércio. Transpondo-se ao cenário brasileiro, destaca-se que os princípios elencados no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor são de suma importância para dirimir conflitos que envolvam o e-commerce, que dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

Cabe aqui ressaltar, que o decreto n. 7.962, de 15 de março de 2013, que Dispõe sobre contratação no e-commerce), ao iniciar os seus efeitos no Brasil, trouxe muita inquietação junto aos empresários que atuam no ramo de comercio eletrônico. Isso porque o decreto estabeleceu novas regras às lojas virtuais, regras estas que, se abrangessem todas as hipóteses de atividades, certamente produzia grandes entraves a várias delas.

Inicialmente é importante diferenciar e-commerce de e-business. O primeiro se refere basicamente ao comércio pela Internet, o segundo, utiliza a Internet como ferramenta para formalização de negócios que não só de venda. Assim, e-business é um gênero do qual o e-commerce é uma espécie.

O mercado vem utilizando algumas siglas para definir espécies de e-business. Há o B2B (Business to Business), que abrange tanto o comércio quanto a parceria realizadas diretamente entre empresas. Já o C2C (Consumer to Consumer) abrange os negócios realizados diretamente entre consumidores, como o realizado por meio de sites de anúncios. Entre esses dois tipos há o B2C (Business to Consumer), que é o comércio das empresas com os consumidores. O termo consumidor do B2C não é técnico-jurídico, conforme se verá.

Este entendimento se depreende do próprio texto do decreto, que no artigo 1º informa que ele “regulamenta a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico”. A citada Lei 8.078/90 é conhecida pela maioria das pessoas como Código de Defesa do Consumidor – CDC. A regulamentação faz todo o sentido, já que nos anos 90 o comércio eletrônico praticamente não existia, não necessitando de regramento.

Todavia, com o crescimento do comércio eletrônico, que possui dinâmica tão peculiar, foi natural que os problemas encontrados na relação entre comprador e vendedor se diferenciassem dos problemas oriundos de uma relação física e direta. Assim, necessário se fazia uma norma que pudesse colocar, pelo menos em parte, as coisas mais nos eixos.

Concluímos que o Decreto 7.962/13 está contido, no sentido de fazer parte, ao CDC, não sendo lógico que regulamente negócios jurídicos que o seu núcleo não regulamente.

Por seu turno, o CDC conceitua consumidor em seu artigo 2º, da seguinte forma: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. A grande questão que se debate ainda hoje é o termo “destinatário final”. Há casos muito fáceis de serem visualizados, como a pessoa que compra um tênis, celular ou relógio. Ela é a destinatária final dos produtos adquiridos. Porém, se esta pessoa compra os mesmos produtos para revenda, não se tratará mais de destinatário final, não lhe protegendo o CDC.

Se o exemplo fosse dado com uma pessoa jurídica não haveria muita mudança. É destinatária final uma empresa que adquire da outra papel para impressão de seus documentos, ou refeições para seus empregados. Todavia, no caso de uma concessionária, por exemplo, que adquire veículos para revendê-los não pode ser chamada de destinatária final.

Dessa forma, a definição que trouxemos anteriormente dos tipos de e-business não se confunde com as definições que podemos dar ao consumidor ou ao destinatário final, vez que um B2B pode envolver uma relação de consumo, ou um B2C pode afastar a mesma relação, se por exemplo, um supermercado comprar fermento de uma loja virtual para fabricar pães para a venda. Nesse caso não será consumidor nos termos do CDC.

Assim, o que vai determinar se o Decreto 7.962/13 é aplicável ou não no caso concreto é localizar se na relação entre as partes existe a presença do destinatário final. Se a resposta for positiva, as novas regras precisarão ser observadas, caso contrário, ou seja, caso o comprador do serviço ou produto não for o consumidor final, não há que se falar na aplicação das regras do Decreto 7.962/13, mesmo que a venda do produto ou serviço seja feita por meio da Internet.

Nesse sentido, encontra-se o Decreto nº 7.296/2013, o qual dispõe sobre a contratação no comércio eletrônico destacando os aspectos contidos nos incisos do artigo 1º:

I – informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor;

II – atendimento facilitado ao consumidor;  

III – respeito ao direito de arrependimento.

Não obstante, ao analisar o texto do decreto, também observa-se que os princípios norteadores são o da confiança, da informação e da segurança, impondo aos sites e aos demais meios eletrônicos que preencham determinados requisitos que possibilitem sua identificação, a segurança das informações dos consumidores, a disponibilização do contrato, um serviço adequado e eficaz que viabilize a resolução de demandas relacionadas à informação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento, dentre outros.

Flagrante o papel do Marco Civil da Internet que, em seu artigo 7º, traça os direitos e as garantias do usuário, no tocante à coleta de dados e ao não fornecimento desses a terceiros sem o prévio e expresso consentimento do titular. Sobretudo, mesmo que ainda em fase de debate, o Anteprojeto de Lei sobre Proteção de Dados Pessoais.

Oportunamente, e de suma relevância, cumpre-nos trazer à luz, neste artigo, “os termos de uso” e “políticas de privacidade”, os quais têm sido criticados principalmente por violar os direitos humanos, tendo em vista trazer em seu bojo invariavelmente, cláusulas genéricas, abusivas e que não consideram a legislação do país em que o serviço está sendo ofertado.

É fato que, a cada dia, surgem novas possibilidades de comércio no ambiente digital, seja e-commerce, social commerce (por meio de mídias sociais) ou m-commerce (mobile).

Ressalta-se que o comércio eletrônico paulista registrou faturamento real (já descontada a inflação) de R$ 15,1 bilhões em 2015, queda de 0,6% na comparação com 2014, quando alcançou R$ 15,2 bilhões. Em termos nominais, o setor apresentou alta de 8,4% na comparação com 2014, uma significativa desaceleração em relação aos 26,4% de crescimento registrado entre 2013 e 2014. É o que aponta a segunda edição da pesquisa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), realizada por meio de seu Conselho de Comércio Eletrônico, em parceria com a E-bit. (5)

Por fim, vale lembrar que os contratos eletrônicos não inovam suficientemente a ordem jurídica a ponto de estabelecerem novos paradigmas avessos ao Direito Contratual consagrado. Em que pesem os avanços nas relações jurídicas, advindos da disseminação dos meios eletrônicos de comunicação, a celebração de negócios por meio da rede mundial de computadores é considerada, pela maioria dos juristas, apenas como uma nova técnica de formação de contratos, e não como um tipo contratual novo, restando preservados os princípios, elementos e requisitos fundamentais da contratação tradicional.

Vimos que a própria tecnologia, que trouxe à baila as benesses e comodidades das relações jurídicas celebradas pela via eletrônica, encarregou-se de proporcionar-lhes mecanismos capazes de lhes assegurar a autenticidade e a integridade que necessitam para adquirirem força probante em nossos tribunais.

A autonomia da vontade, o consensualismo, a obrigatoriedade das convenções, a relatividade dos efeitos do negócio jurídico e a boa-fé como princípios fundamentais devem reger todas as contratações, inclusive as celebradas em meio eletrônico, destacando que a legislação brasileira, em especial o artigo 129 do Código Civil, adota, como regra, a liberdade de formas para as declarações de vontade.

 Referência Bibliográfica.

(1) Lei Modelo da Uncitral. Acessado em 02/04/2017 e Disponível em: http://www.lawinter.com/1uncitrallawinter.htm

(2) PINHEIRO, Patricia Peck. Direito Digital. – 6ª Edição – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 536/537.

(3 )AGUIRRE, Renata Cattini Maluf. Relações de consumo no comércio eletrônico do entretenimento. In: Direito do Entretenimento na Internet / Andréa Francez, José Carlos Costa Netto, Sérgio Famá D´Antino (coords.). – São Paulo: Saraiva, 2014. p. 178-179.

(4) Declaração de Bruxelas sobre Comércio e Internet, 2016- Plano de ação europeu (2016-2020) para a administração pública em linha Acelerar a transformação digital da Administração pública –  Acessado em 02/04/2017   e disponível em: http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2014_2019/plmrep/AUTRES_INSTITUTIONS/COMM/COM/2017/03-20/COM_COM(2016)0179_PT.pdf

(5) FECOMERCIOSP. Comércio eletrônico paulista fatura R$ 15,1 bilhões em 2015. Publicado em: 04 mar.2016. Acessado em 02/04/2017 e Disponível em: http://www.fecomercio.com.br/noticia/comercio-eletronico-paulista-fatura-r-15-1-bilhoes-em-2015

BLUM, Renato Opice (coordenador). Direito eletrônico – a internet e os tribunais. São Paulo: EDIPRO, 2001. Formato e-book.

Legislação

– Código Civil

– Código de Defesa do Consumidor

– Decreto nº 7.962, de 15 de março de 2013 (Dispõe sobre contratação no e-commerce)

– Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet)

– Decreto nº 8.771/2016 (Regulamenta o Marco Civil da Internet)

– Lei nº 12.865, de 09 de outubro de 2013 (dispõe sobre os arranjos de pagamento e as instituições de pagamento integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB)

– Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 (Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP Brasil)

– Projeto de Lei nº 5.276/2016 (Proteção de Dados Pessoais)

Valéria Reani é advogada, pós-graduada em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Damásio Educacional, com foco em Cyberbullying, e-commece, fraudes e crimes digitais, Direito autoral e de imagem; especialista em Gestão Empresarial pela PUC Campinas com atuação em plano de Marketing jurídico e Compliance como instrumento da Governança corporativa; professora em Educação Digital, Ética e Legislação. Presidente Comissão de Direito Eletrônico OAB Santos e Membro Efetivo da Comissão de Direito Digital da OAB Campinas.

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