Artigo: Punir o desacato fere a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto San Jose da Costa Rica

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Alexandre Cunha

Dr. Alexandre Sanches Cunha

   O artigo 331 do Código Penal prevê o crime de desacato, assim descrito: “desacatar funcionário público no exercício da função ou    em razão dela”, tratando-se de delito, segundo intitula a doutrina: formal, comum, unissubjetivo, unissubsistente e de menor    potencial ofensivo, tendo como fundamento teleológico a proteção da dignidade da Administração Pública e do exercício do    Serviço Público.

 Ocorre que, a incriminação do desacato afronta o art. 13 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969) (Pacto San Jose  da Costa Rica), que trata da liberdade de expressão, ao estabelecer relação vertical entre o indivíduo e o Estado.

 Em relatório anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH), ano  2000, restou concluído que as leis de desacato são incompatíveis com a referida Convenção, instando os Estados que as  derrogassem, como assim acatou a Argentina.

Destaque-se importante trecho do relatório da CIDH:

A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias. Inclusive aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das declarações efetuadas, restringem indevidamente a livre expressão porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser provadas. As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu propósito é defender a “ordem pública” (um propósito permissível para a regulamentação da expressão em virtude do artigo 13), já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona adequadamente, constitui a maior garantia da ordem pública. Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o governo pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria.

(Relatório Anual da CIDH, 2000, Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de Expressão, Capítulo II [OEA/Ser. L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001]).

O Supremo Tribunal Federal assentou entendimento que os tratados internacionais que versem sobre Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal – à exceção dos tratados aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional, os quais, a teor do art. 5º, §3º, da Constituição Federal, possuem natureza constitucional –, quando declarou ilegal a prisão de depositário infiel, que era prevista no Código de Processo Civil (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto):

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5o DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988.POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). […]

Nesse contexto, porque o art. 331 do Código Penal conflita com o art. 13 do Pacto San Jose da Costa Rica, tendo status jurídico inferior a ele, há de prevalecer o tratado.

Isto posto, vale destacar que, o Estado brasileiro está sendo omisso ao não derrogar o crime de desacato do ordenamento jurídico do país.

A manutenção do referido tipo penal no Brasil pode ser explicado pela formação história do país, em que a escravidão e as ditaduras dificultam a implementação de ideais democráticos, perfazendo apenas uma democracia formal, onde os agentes públicos não se prestam para servir a população, mas entendem-se acima da lei, ocorrendo diversos abusos de poder.

O (Provável) IMPACTO NA ADVOCACIA

A Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em sua redação original, dispunha em seu art. 7º, §2º, que: “o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”.

Contudo, em 2006, o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.127-8, declarou a expressão “ou desacato” inconstitucional.

Nesse diapasão, hoje, os advogados são uma classe por vezes amedrontada pelos abusos das autoridades, especialmente magistrados que dão voz de prisão a advogados que discordam de suas decisões.

O eventual abolitio criminis do desacato frearia de certa forma o autoritarismo de alguns juízes que se entronam no poder, dando efetividade à liberdade de expressão. Permanecendo resguardado o direito de reparação do ofendido através dos crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação.

 Alexandre Sanches Cunha é Advogado Criminal, Bacharel pela PUC-Campinas, Bacharel em Filosofia pela Unicamp, especialista em Direito Penal pela PUC-Campinas, especialista em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra e Mestre em Filosofia Antiga pela Unicamp.

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