O Compliance nas Startups – Entenda os motivos para investir nesta Prática
08/06/2018A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Falência de Sociedade Empresária por meio de Incidente Processual
19/12/2018Por Ricardo Pires
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem como objetivo estudar a aplicabilidade dos negócios jurídicos processuais em sentido amplo, novidade legislativa trazida nos artigos 190 e 191 pelo Código de Processo Civil de 2015, à recuperação judicial de empresas, contemplada pela Lei n. 11.101/2005.
Não há como se olvidar que a Lei de Recuperação de Empresas alberga a possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, isso porque a dicção do artigo 189 da citada lei assim o diz de forma clarividente.
Entretanto, no que tange aos negócios jurídicos processuais, muitas são as ilações dos processualistas e profissionais atuantes na seara do direito falimentar, talvez porque sua aplicabilidade na prática seja deveras complexa e também por se tratar de tema novo e, da forma como posta no sobredito artigo 190, sem precedentes no direito brasileiro.
Conforme mencionado alhures, o negócio jurídico processual em sentido amplo e geral trata-se de inovação legislativa trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, sem correspondência no antigo Código de 1973, que vem sendo utilizado como forma de dar flexibilidade ao processo judicial, buscando emprestar-lhe maior eficiência e imprimir adaptabilidade dos mecanismos processuais de tutela dos direitos às necessidades dos jurisdicionados.
As convenções processuais são uma realidade, fazem parte do cotidiano contratual em diversos setores da economia e estão presentes tanto em contratos de grande complexidade como em simples negócios jurídicos.
De toda sorte, seria crível afirmar que o novel instituto se amolda as necessidades da Lei n. 11.101/2005, cuja eficiência pode ser norteadora e decisiva para o soerguimento das atividades empresariais da recuperanda ou para sua quebra?
Nesse comenos, este trabalho, num primeiro momento, discorre sobre a conceituação dos negócios jurídicos processuais, cominando na breve explanação acerca da distinção entre (i) atos jurídicos e (ii) negócios jurídicos, trazendo à baila a discussão doutrinária sobre o tema, passando, em seguida, a tratar de suas limitações.
Feitas as explanações necessárias acerca dos negócios jurídicos processuais, como corolário lógico, seguimos para o estudo da recuperação judicial e seus efeitos.
Assim, nesse item, busca-se discorrer sobre a recuperação judicial, sob o prisma da Lei n. 11.101/2005 e, principalmente, do princípio da preservação da empresa, na conjectura de que o soerguimento de uma empresa recuperável pode trazer benefícios a toda sociedade – a cognominada função social da empresa –, bem como homenagear os princípios insculpidos na Constituição Federal da República.
Após as conceituações e breves esclarecimentos acerca dos negócios jurídicos processuais e da recuperação judicial, passa-se à verificação de compatibilização entre os institutos, bem como sua aplicação prática.
Por derradeiro, caminha-se a conclusão do trabalho e análise das consequências da aplicação dos negócios jurídicos processuais à recuperação judicial, mormente sob o aspecto prático.
Para tanto, os métodos de interpretação utilizados para a elaboração do presente trabalho foram o empírico, a interpretação sistemática, lógica, histórica e teleológica.
Inegável a atualidade e relevância do tema estudado neste trabalho, haja vista que hodiernamente diversas empresas de todos os seguimentos estão se socorrendo ao beneplácito legal da recuperação judicial como ultima ratio para voltarem a ser saudáveis e lucrativas. Nessa senda, o impacto para a sociedade é igualmente incontestável, visto que diante de um processo recuperacional estão os credores, o fisco, os trabalhadores, a economia local, o desenvolvimento social regional etc., como se verá adiante.
2. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
De introito, necessário se faz uma breve digressão histórica acerca dos negócios jurídicos processuais, mormente considerando o que previa o revogado Código de Processo Civil de 1973.
A bem da verdade, tal código não tratava especificamente dos negócios jurídicos processuais em sentido amplo, contudo, o já obsoleto Código de 73 previa algumas hipóteses que afiançavam, de certa forma, a convenção processual entre as partes. Possivelmente a mais utilizada dentre todas as proposições foi a eleição de foro, presente quase que na totalidade dos contratos celebrados no Brasil, porém como exemplo ainda podemos citar a renúncia ao direito de recorrer (art. 502), escolha do juízo da execução (art. 475-P, parágrafo único), opção do exequente por substituir a arrematação pela alienação do executado (art. 684, I), convenções sobre prazos dilatórios (art. 181) etc.
No Novo Código ampliou-se significativamente a possibilidade de se flexibilizar o processo, sendo que, atualmente com a vigência do Código de 2015 as partes podem convencionar, por exemplo, sobre a eleição de foro (art. 63), suspensão do processo (art. 313, II), adiamento da audiência (art. 362, I), redução de prazos (art. 222, § 1º), escolha do perito (art. 471), delimitação das questões de fato e de direito na causa para as atividades de instrução e julgamento (art. 357, § 2º), escolha do mediador ou conciliador (art. 168), não realização da audiência de mediação ou conciliação (art. 334, § 4º, I), distribuição do ônus da prova (art. 373, § 3º) e o calendário processual (art. 191) e, principalmente, sobre quaisquer direitos que admitam autocomposição, redação dada pelo já citado artigo 190, CPC.
Para Julio Guilherme Müller[1], essa ampliação vai muito além daquelas previstas expressamente na legislação, in verbis:
Se outrora as convenções eram possíveis apenas nas hipóteses de incidência legalmente estabelecidas, na novel legislação, o objeto possível de um acordo foi ampliado tanto pelo aumento de situações típicas, quanto pela criação de cláusula geral de negócio processual (CPC, art. 190). Por esta, os negócios processuais que se disponham a ajustar o procedimento para adequá-lo às especificidades, ou situações processuais sobre os ônus, poderes, deveres e faculdades das partes, sem que haja uma exata previsão ou um tipo estabelecido, dão ao sistema uma inequívoca abertura e mobilidade. A existência normativa de cláusula geral não tipifica o negócio e tampouco permite que haja determinação prévia de todas as possibilidades que podem ser objeto de convenção.
Assim, tem-se que após o advento do Novo Código de Processo Civil, bem como da cláusula geral de negócio processual, prevista em seu artigo 190, inúmeras são as possibilidades de se convencionar um novo procedimento dentro do processo, de forma que possa se adequar o procedimento às especificidades da causa ou das partes.
Nas lições do jurista Fredie Didier Jr.[2]:
Há negócios processuais relativos ao objeto litigioso do processo, como o reconhecimento da procedência do pedido, e há negócios processuais que têm por objeto o próprio processo, em sua estrutura, como o acordo para suspensão convencional do procedimento. O negócio que tem por objetivo o próprio processo pode servir para a redefinição das situações jurídicas processuais (ônus, direitos, deveres processuais) ou para a reestruturação do procedimento.
Outrossim, podemos dizer que, em razão da existência da cláusula geral de negociação sobre o processo[3], para todo direito que admitir autocomposição, com partes plenamente capazes, há a possiblidade de se negociar o procedimento processual, antes ou depois da ocorrência do litígio.
Para Diogo Assumpção Rezende de Almeida[4]:
A atividade jurisdicional remonta à Antiguidade e vem se reinventando ao sabor da evolução da humanidade e das civilizações. O homem passou a conviver com outros seres humanos em sociedade, pouco importa se por resultado de um impulso associativo natural ou com a finalidade de viver em segurança, o que lhe impôs a observância de regras de conduta. A vida social apresenta percalços e discordâncias, os quais precisam ser solucionados para a manutenção do equilíbrio. Conflitos são, pois, inerentes ao convívio humano, sejam representados por meros dissabores da vida cotidiana ou por divergências de grande relevância.
Nesse bordo, temos que a convivência em sociedade pressupõe conflitos, pois esses são inerentes ao convívio e às relações complexas de interação entre as pessoas.
Ainda citando o entendimento de Diogo Assumpção Rezende de Almeida, tem-se como “equivocada a postura radical de que pouco importam as pretensões envolvidas na relação jurídica processual, desde que se atue a vontade da lei.” (Almeida, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil / Diogo Assumpção Rezende de Almeida – São Paulo : LTr, 2015, p. 89), sendo que igualmente nos parece exagerada a concepção de que o processo é coisa exclusiva das partes. Deve-se, portanto, buscar-se um meio termo.
Esse meio termo, albergado pelo Novo Código de Processo Civil, são as convenções processuais, que tratam-se de pactos firmados entre duas ou mais pessoas, com a finalidade de fixação de regras entre elas que servirão para normatizar – de forma distinta daquela prevista em lei – algum aspecto processual ou procedimental da solução de eventual litígio que exista ou venha a existir.
A definição de negócio jurídico é abundantemente citada nas doutrinas civilista e processualista nacionais.
Para Silvio de Salvo Venosa[5], “Trata-se de uma declaração de vontade que não apenas constitui um ato livre, mas pela qual o declarante procura uma relação jurídica entre as várias possibilidades que oferece o universo jurídico”.
Para Maria Helena Diniz[6], “É o poder de autorregulação dos interesses que contém a enunciação de um preceito, independentemente de querer interno”.
Já na doutrina processualista, temos a lição de Fredie Didier Jr.[7], de que o “Negócio processual é o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático confere-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados, certas situações jurídicas processuais”.
2.1. BREVE DISTINÇÃO ENTRE ATOS JURÍDICOS X NEGÓCIOS PROCESSUAIS
Antes de adentrarmos na distinção propriamente dita dos atos jurídicos e dos negócios jurídicos processuais, interessante que seja feita uma breve introdução en passant sobre a definição de fatos jurídicos.
No direito brasileiro, clássica é a definição dada por Pontes de Miranda acerca do fato jurídico, veja-se:
Após acurado estudo dos fatos jurídicos, a partir da revisão dos processos lógicos e metodológicos empregados para se classificarem os fatos jurídicos, tivemos de assentar, preliminarmente, que (a) são fatos jurídicos quaisquer fatos (suportes fáticos) que entrem no mundo jurídico, portanto sem qualquer exclusão de fatos contrários a direito, (b) o hábito de se excluírem, no conceito, e na enumeração dos fatos jurídicos, os fatos contrários ao direito, principalmente os atos ilícitos, provêm de visão unilateral do mundo jurídico, pois os atos ilícitos, como todos os fatos contrários a direito, entram no mundo jurídico, são fatos jurídicos que contrários a direito, que, recebendo a incidência das regras jurídicas, que nele se imprimem, surtem efeitos jurídicos (direito, pretensão e ação de indenização até restituição, direito ao desforço pessoal, à reedificação etc.).
O fato jurídico pressupõe a existência de fatos sociais, estes que passaram a ser jurídicos quando da assimilação, seja de forma orgânica ou de resistência, do efeito de uma regra jurídica. Assim, um fato jurídico sempre nasce de um fato social, o qual, em certo momento, recebe a incidência de uma regra jurídica, seja para ratifica-lo como para condená-lo, tornando-o, assim, jurídico.
Pois bem.
Seguindo-se para a conceituação de ato jurídico, temos a lição de Marcos Bernardes de Mello[8], que o faz da seguinte forma:
É evidente que a situação de fato criada pela conduta, comissiva ou omissiva, constitui uma mudança permanente no mundo, passando a integrá-lo definitivamente, sem que haja a possibilidade de, simplesmente, ser desconsiderada (como seria possível se se tratasse, exclusivamente, de conduta). Como o ato que está à base da ocorrência do fato é da substância do fato jurídico, a norma jurídica o recebe como avolitivo, abstraindo dele qualquer elemento volitivo que, porventura, possa existir em sua origem; não importa, assim, se houve, ou não, vontade em praticá-lo.
Nesse escopo, impende asseverar que os atos jurídicos provocam efeitos, não importando se foram, ou não, queridos pelos seus autores.
Para Leonardo Carneiro da Cunha, “a distinção não é simples, pois tanto no ato jurídico como no negócio há manifestação de vontade que produz efeitos previstos em lei.” (Cunha, Leonardo Carneiro da. Negócios processuais / coordenadores: Antonio do Passo Cabral, Pedro Henrique Nogueira. – 3. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 41).
Com efeito, a característica destacada por grande parte da doutrina é de que os negócios jurídicos possuem vontade declarada, enquanto que os atos jurídicos não necessariamente.
Nesse diapasão, sejam os atos jurídicos ou os negócios jurídicos, ambos possuem efeitos no plano do direito. Estes não decorrem da vontade, mas sim da lei.
Referidos efeitos jurídicos estão assentados pela legislação, ao passo que, em algumas hipóteses, confere-se aos sujeitos de direito algum poder de escolha e flexibilização do quanto disposto. Especificamente desta flexibilização que trataremos no presente trabalho, aplicada especificamente à recuperação judicial de empresas.
2.2. LIMITAÇÕES DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
É cediço que os negócios jurídicos processuais possuem certas limitações, estas que podem ser encontradas no próprio Código de Processo Civil de 2015, cuja finalidade é que a cláusula geral de negociação processual não seja extrapolada pelas partes.
O parágrafo único, do artigo 190, do CPC, diz que:
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
O grande desafio da doutrina, doravante a vigência do Código de Processo Civil de 2015, será identificar a limitação dos negócios jurídicos processuais.
Para José Miguel Garcia Medina[9]:
O juiz deve respeitar o negócio processual celebrado entre as partes, desde que a convenção realizada limite-se àquilo que as partes podem dispor. No entanto, não podem as partes em seu negócio processual, criar deveres para o órgão jurisdicional, nem eliminar deveres que a jurisdição estatal tem, na administração da justiça. Rigorosamente, um negócio assim celebrado seria ineficaz – já que atingiria a esfera jurídica de alguém que dele não participou – caso exigida sua observância frente ao órgão jurisdicional, deverá este decretar sua nulidade.
Em nosso sentir, o juiz não é parte do negócio jurídico processual, pois o ordenamento jurídico veda a autocomposição pelo magistrado, frente ao seu ônus e papel jurisdicional outorgado pelo Estado. Dessa forma, o juiz possui legitimidade para homologar ou não o negócio jurídico processual, desde que não haja a ocorrência do quanto disposto no citado parágrafo único, do artigo 190, do Código de Processo Civil.
Contudo, isso não significa que ele esteja totalmente desvinculado do negócio jurídico processual em si, tendo importante papel em realizar o controle de legalidade da convenção, chancelando-a, ou não.
Por fim, não é bastante asseverar que somente poderá ser considerado como negócio jurídico processual aquela convenção que tenha como objeto direito processual passível de ser autocomposto pelos sujeitos legitimados, ressalvadas, também, as possibilidades de anulabilidade e nulidade de referidos atos.
3. RECUPERAÇÃO JUDICIAL
O processo de recuperação judicial, com origem dada pela promulgação da Lei n. 11.101/2005, tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira de uma empresa em dificuldade financeira, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica e até o pagamento de tributos.
O espírito norteador da Lei de Recuperações de Empresas emana do artigo 170 da Constituição Federal de 1988, que regulamenta a ordem econômica no Brasil, com os seguintes princípios:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 06/95)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Assim sendo, o artigo 170 da Carta Magna, vem a aclarar o conteúdo do artigo 1º, IV e 5º, XX do Diploma Constitucional, dispondo inequivocamente sobre os princípios norteadores da ordem econômica, quais sejam, soberania nacional, função social da sociedade privada (e da empresa), e emprego pleno.
É unívoco que o problema da função socioeconômica da empresa em crise não passou despercebido por ocasião da tramitação do Projeto de Lei de Recuperação de Empresas e Falências (PLC 71/2003)[10]. Com efeito, vale reproduzir trecho do Parecer n. 534[11], da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, elaborado sob a relatoria do Senador Ramez Tebet:
Nesse sentido, nosso trabalho pautou-se não apenas pelo objetivo de aumento da eficiência econômica – que a lei sempre deve propiciar e incentivar – mas, principalmente, pela missão de dar conteúdo social à legislação. O novo regime falimentar não pode jamais se transformar em bunker das instituições financeiras. Pelo contrário, o novo regime falimentar deve ser capaz de permitir a eficiência econômica em ambiente de respeito ao direito dos mais fracos.
Assim sendo, os princípios adotados na análise pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal do PLC 71/2003, e nas modificações propostas, se encontram relacionados com a questão de ordem econômica, destacando a preservação da empresa, a recuperação de empresas recuperáveis, a retirada das empresas não recuperáveis, a tutela dos interesses de trabalhadores e a redução do custo do crédito no Brasil.
Logo, o papel da empresa em crise merece ser interpretado segundo sua capacidade (operacional, econômica e financeira) de atendimento dos interesses que vêm priorizados pela norma legal e constitucional, nomeadamente os interesses do trabalhador, de consumidores, de agentes econômicos com os quais o empresário se relaciona, incluindo-se no último a comunhão de seus credores (principalmente aqueles considerados estratégicos para a atividade empresarial, como credores financeiros e comerciais, incluindo-se fornecedores de produtos e serviços) e, enfim, de interesses da própria coletividade, entre os quais se destacam aqueles relacionados ao meio ambiente.
Absolutamente apropriada a lição de Eros Roberto Grau[12] discorrendo sobre a função social da propriedade:
É a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.
Portanto, esse cruzamento de interesses não deve ser apenas quantitativo (considerados sob o enfoque de valor em dinheiro a ser satisfeito no curso da recuperação), como também qualitativo, prevalecendo nesse panorama os seguintes interesses declinados no artigo 170, da Constituição Federal da República:
Livre iniciativa econômica (art. 1º, IV e art. 170, C.F.) e liberdade de associação (art. 5º, XX, C.F.);
Propriedade privada e função social da propriedade (art. 170, I e II, C.F.);
Sustentabilidade socioeconômica (valor social do trabalho, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução de desigualdade e promoção do bem-estar social, art.170, caput e incisos V, VI, VII, C.F.);
Livre concorrência (art. 170, IV, C.F.);
Tratamento favorecido ao pequeno empreendedor (art.170, IX, C.F.).
Assim sendo, clarividente se mostra que a Lei de Recuperação de Empresas nada mais é do que um desdobramento dos artigos 1º, IV, 5º XX e 170 da Constituição Federal de 1988.
Veja-se, por exemplo, como a ordem econômica regida no aludido dispositivo Constitucional é toda ela parte da Lei de Recuperação de Empresas, valendo aqui trazer a Exposição de Motivos da Lei n. 11.101/2005[13], brilhantemente pontuada pelo Senador Ramez Tebet:
Princípios adotados na análise do PLC nº 71, de 2003, e nas modificações propostas:
Preservação da empresa: em razão de sua função social, a empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País. Além disso, a extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico representado pelos chamados “intangíveis”, como nome, ponto comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores, know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre outros.
Separação dos conceitos de empresa e de empresário: a empresa é o conjunto organizado de capital e trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços. Não se deve confundir a empresa com a pessoa natural ou jurídica que a controla. Assim, é possível preservar uma empresa, ainda que haja a falência, desde que se logre aliená-la a outro empresário ou sociedade que continue sua atividade em bases eficientes.
Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis: sempre que for possível a manutenção da estrutura organizacional ou societária, ainda que com modificações, o Estado deve dar instrumentos e condições para que a empresa se recupere, estimulando, assim, a atividade empresarial.
Retirada de sociedades ou empresários não recuperáveis: caso haja problemas crônicos na atividade ou na administração da empresa, de modo a inviabilizar sua recuperação, o Estado deve promover de forma rápida e eficiente sua retirada, a fim de evitar a potencialização dos problemas e o agravamento da situação dos que negociam com pessoas ou sociedades com dificuldades insanáveis na condução do negócio.
Proteção aos trabalhadores: os trabalhadores, por terem como único ou principal bem sua força de trabalho, devem ser protegidos, não só com precedência no recebimento de seus créditos na falência e na recuperação judicial, mas com instrumentos que, por preservarem a empresa, preservem também seus empregos e criem novas oportunidades para a grande massa de desempregados.
Redução do custo do crédito no Brasil: é necessário conferir segurança jurídica aos detentores de capital, com preservação das garantias e normas precisas sobre a ordem de classificação de créditos na falência, a fim de que se incentive a aplicação de recursos financeiros a custo menor nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico.
Celeridade e eficiência dos processos judiciais: é preciso que as normas procedimentais na falência e na recuperação de empresas sejam, na medida do possível, simples, conferindo-se celeridade e eficiência ao processo e reduzindo-se a burocracia que atravanca seu curso.
Segurança jurídica: deve-se conferir às normas relativas à falência, à recuperação judicial e à recuperação extrajudicial tanta clareza e precisão quanto possível, para evitar que múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos e, assim, fique prejudicado o planejamento das atividades das empresas e de suas contrapartes.
Participação ativa dos credores: é desejável que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, diligenciando para a defesa de seus interesses, em especial o recebimento de seu crédito, otimizem os resultados obtidos com o processo, com redução da possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida.
Maximização do valor dos ativos do falido: a lei deve estabelecer normas e mecanismos que assegurem a obtenção do máximo valor possível pelos ativos do falido, evitando a deterioração provocada pela demora excessiva do processo e priorizando a venda da empresa em bloco, para evitar a perda dos intangíveis. Desse modo, não só se protegem os interesses dos credores de sociedades e empresários insolventes, que têm por isso sua garantia aumentada, mas também diminui-se o risco das transações econômicas, o que gera eficiência e aumento da riqueza geral.
Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte: a recuperação das micro e pequenas empresas não pode ser inviabilizada pela excessiva onerosidade do procedimento. Portanto, a lei deve prever, em paralelo às regras gerais, mecanismos mais simples e menos onerosos para ampliar o acesso dessas empresas à recuperação.
Foi no sentido de enfrentar o problema da crise econômico-financeira da empresa desde estes objetivos e fundamentos que a Lei de Recuperação de Empresas inovou o direito concursal brasileiro, no sentido de vincular-se à preocupação com a manutenção da fonte produtora, com os empregos por ela gerados, bem como com o interesse dos credores, adotando, entre outros instrumentos, a recuperação judicial, descrita no art. 47, da Lei n. 11.101/2005, in verbis:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica
À obviedade, o que se busca ao suportar os ônus de um processo de recuperação judicial é o soerguimento das atividades empresariais e a preservação da empresa.
Dessa forma, trataremos no capítulo seguinte acerca do referido princípio da preservação da empresa, norteador para o entendimento dos objetivos buscados com a edição e vigência da Lei n. 11/101/2005.
3.1. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA
Curial se faz lembrar que o objetivo principal da recuperação judicial é a salvação da atividade empresarial em risco, com a manutenção da fonte produtora para satisfação dos débitos em aberto e, principalmente, a preservação dos empregos e rendas, conforme bem pontuado pelo supracitado artigo 47 da LRE.
Nesse escopo, evidente que a Lei de Recuperação de Empresas deve ser interpretada à luz da Constituição Federal de 1988, uma vez que a preservação da empresa é princípio constitucional consagrado no valor social da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, da CF) e como derivação direta da garantia do direito de propriedade privada e sua imprescindível função social (artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da CF).
Assim, conjugando os mandamentos em referência ao que leciona o art. 170 da Carta Magna e art. 5º da LINDB, entende-se que é dever do Estado e da sociedade buscar a preservação da empresa economicamente viável sempre que possível, somando-se esforços na intenção principal de recuperar a empresa.
Acerca do tema, tecem as seguintes lições o doutrinador Gladstom Mamede[14]:
Uma das metanormas que orienta o Direito Empresarial, viu-se no primeiro volume desta coleção, é o princípio da preservação da empresa, cujos alicerces estão fincados no reconhecimento da sua função social. Por isso, a crise econômico-financeira da empresa é trada juridicamente como um desafio passível de recuperação, ainda que se cuide de atividade privada, regida por regime jurídico privado. Como se só não bastasse, a previsão de um regime jurídico para a recuperação da empresa decorre, igualmente, da percepção dos amplos riscos a que estão submetidas as atividades econômicas e seu amplo número de relações negociais, para além de sua exposição ao mercado e seus revezes constantes. Compreende-se, assim, o instituto jurídico da recuperação de empresa, disposto na Lei 11.101/05, sob duas formas: recuperação judicial e recuperação extrajudicial. O legislador reconhece que crises são inerentes à empresa, podendo resultar do processo de mundialização, do envelhecimento da estrutura produtiva material (maquinário, instrumental) ou imaterial (procedimentos de administração, logística etc.), entre outros fatores. Não se encaixa facilmente em análises maniqueístas (bom pagador ou mau pagador, honesto ou desonesto), embora haja situações em que seja fácil averiguar que a crise decorre da prática de atos ilícitos.
Nesse sentido decidiu a Segunda Seção do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no Conflito de Competência 86.594/SP:
A recuperação judicial tem como finalidade precípua o soerguimento da empresa mediante o cumprimento do plano de recuperação, salvaguardando a atividade econômica e os empregos que ele gera, além de garantir, em última ratio, a satisfação dos credores.
Portanto, em última análise, a recuperação judicial tem como objetivo principal a preservação da empresa e sua fonte produtora, isto é, a própria empresa.
Dessa referida preservação, derivam-se os corolários lógicos da recuperação: – preservação dos empregos dos trabalhadores, interesses dos credores, recolhimento de tributos etc., como grandezas de menor importância num contexto geral.
Por derradeiro, surge uma nova corrente acerca da finalidade da recuperação judicial, a da “superação do dualismo pendular”, esta que nos parece bastante coerente e que se amolda a realidade falimentar do nosso ordenamento jurídico.
Sobre o tema, Daniel Carnio Costa[15]:
Entretanto, proponho a necessidade de superação desse dualismo pendular, deslocando-se o foco da interpretação para a busca da finalidade útil do instituto jurídico. A finalidade do instituto e o bom funcionamento do sistema jurídico devem prevalecer sobre a proteção do interesse de um dos polos da relação de direito material.
(…)
Por isso é que sustento a necessidade de superação do dualismo pendular. A preservação da eficiência do sistema dever ser o limite do exercício da interpretação da lei. Esse raciocínio se aplica totalmente aos processos de insolvência. Muito embora se observe que o pêndulo legal oscilou entre credor e devedor durante a evolução dos institutos legais, deve-se reconhecer que, nesse momento, esse pêndulo deve ser deslocado das partes para a realização eficaz da finalidade do próprio instituto. Assim, a interpretação correta, quando se trata de recuperação de empresas, por exemplo, será sempre aquela que prestigiar a recuperação da atividade empresarial em função dos benefícios sociais relevantes que dela resultam. Deve-se buscar sempre a realização do emprego, do recolhimento de tributos, do aquecimento da atividade econômica, da renda, do salário, da circulação de bens e riquezas, mesmo que isto se dê em prejuízo do interesse imediato da própria devedora ou dos credores.
Como se vê, de acordo com essa teoria há um enfraquecimento da contemplação dos interesses particulares, sobretudo dos credores e do devedor, para que sejam observados fins mais coletivos e sociais na recuperação judicial.
4. COMPATIBILIZAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS COM A RECUPERAÇÃO JUDICIAL
4.1. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
A Lei n. 11.101/2005 traz em seu bojo uma série de regras materiais e processuais, ao passo que, frente a essa combinação optativa do legislador, seu texto não foi capaz de abordar todas as situações processuais possíveis em um processo de recuperação judicial.
Para que fossem supridas as prováveis lacunas que inevitavelmente viriam a surgir quando do trâmite regular de uma recuperação, o legislador editou o artigo 189 da Lei de Recuperação Judicial, segundo o qual remete à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil[16]:
Art. 189. Aplica-se a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei.
Nas palavras de Geraldo Fonseca de Barros Neto[17]:
Ao contrário, a recuperação judicial se processa, do início ao fim judicialmente. Nasce a recuperação judicial pelo ajuizamento da petição inicial; o plano de recuperação é apresentado em juízo, ao qual se direcionam as objeções contrárias a tal plano; a concessão da recuperação é ato do juiz; encerra-se a recuperação por sentença.
Assim, pode-se dizer que a recuperação judicial se concretiza obrigatoriamente por meio do processo. Em outras palavras, não há recuperação judicial senão por processo. Essa constatação justifica a preocupação com o estudo dos aspectos processuais da recuperação judicial.
Ainda acerca do indigitado artigo 189, da LRE, as lições de Manoel Justino Bezerra Filho[18]:
De qualquer forma, reitere-se a observação feita anteriormente, no sentido de que esta Lei, da mesma forma que a lei anterior, tem natureza mista, trazendo tanto normas de direito material quanto normas de direito processual. O artigo estabelece que, não existindo normas processuais na Lei 11.101/2005 que regulem um determinado caso, o aplicador do Direito (incluindo seus destinatários) deverão, em caráter subsidiário, recorrer às normas previstas no Código de Processo Civil, com o intuito de encontrar ali o regramento adequado para a hipótese. Dessa forma, em primeiro lugar, o aplicador vai se valer das normas processuais específicas previstas na Lei de Recuperação, apenas dirigindo-se ao CPC caso não encontre disposição pertinente.
Assim, resta patente a compatibilidade entre a Lei n. 11.101/2005 e o Código de Processo Civil, com espeque na aplicação subsidiária desta, quando aquela não possuir previsão satisfatória para o caso concreto.
4.2. APLICABILIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Com efeito, este item se apresenta como o ponto nevrálgico da compatibilidade dos negócios jurídicos processuais com a recuperação judicial: sua aplicação prática.
Antes de adentrarmos ao mérito propriamente dito, importante entender um pouco da dinâmica de um processo de recuperação judicial e seu tempo de tramitação até a realização da Assembleia Geral de Credores, momento em que o plano de recuperação judicial é votado pelos interessados.
Para melhor ilustrar o quão moroso é um processo recuperacional, citamos a seguir um trecho dos levantamentos de estudos realizados na 1ª fase de resultados do Observatório de Insolvência da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ, do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Insolvência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP, após brilhante trabalho empírico realizado nas Varas Especializadas da Capital do Estado de São Paulo.
Denota-se do material disponibilizado no domínio virtual http://rpubs.com/abj/pucrj_pre, datado de 17 de junho de 2017, que ao analisar 194 (cento e noventa e quatro) recuperações judiciais entre o período de 01 de setembro de 2013 a 30 de junho de 2016, exclusivamente nas Varas de Recuperação Judicial e Falência da capital paulista, os pesquisadores concluíram que o tempo médio até a última Assembleia Geral de Credores chega a 507 (quinhentos e sete) dias, sendo que 1/3 (um terço) das recuperandas têm o stay period[19] prorrogado, veja-se:
É importante assentar que esse tempo médio é alcançado pelas Varas Especializadas de São Paulo, que tratam exclusivamente de assuntos de natureza falimentar, com magistrados especializados e dedicados ao tema.
Embora não haja até o momento um estudo mais abrangente e igualmente confiável, seria uma heresia imaginarmos que as Varas comuns obtenham prazo inferior a esse, e não por demérito intelectual ou precariedade operacional, mas, sobretudo, pela pluralidade de assuntos enfrentados concomitantemente aos de insolvência de empresas, bem como pela alta quantidade de processos em trâmite.
Dito isso, verifica-se a importância do debate acerca da aplicação de negócios jurídicos processuais à recuperação judicial, mormente com o fito de dar a celeridade necessária ao instituto.
Embora o caput do artigo 190 do Código de Processo Civil afirme ser possível a celebração de negócios processuais antes da formação do processo judicial ser instalado, entendemos que para a recuperação judicial possa haver alguns óbices práticos.
De forma consectária, a título de exemplos, tem-se que os sobreditos negócios processuais podem ser convencionados no (i) plano de recuperação judicial, na (ii) assembleia geral de credores, bem como nas (iii) habilitações, divergências e impugnações de créditos.
De mais a mais, passemos a exemplos de aplicação de negócios processuais na recuperação judicial, sem o intuito de exaurir as demais possibilidades.
É sabido que a Lei n. 11.101/2005 estabelece em seu artigo 61[20] que a recuperanda, após ter seu plano de recuperação judicial homologado pelo juiz, terá que permanecer por 02 (dois) anos em supervisão judicial, o que significa dizer que neste período a empresa ficará sob os holofotes frente aos interessados em sua recuperação, bem como do administrador judicial – o que lhe gera inúmeros custos, inclusive com os honorários do próprio administrador.
Ademais, além dos custos mencionados, a recuperanda permanece com a pecha de “em recuperação judicial” na Junta Comercial de seu Estado, o que lhe impede muitas vezes de tomar empréstimos bancários e conseguir dinheiro no mercado com taxas menores.
Dessa feita, poderiam as partes convencionar em diminuir tal prazo, para que a recuperanda não experimente os 02 (dois) anos que a LRE determina?
Nessa mesma linha, determina o § 1º[21] do artigo mencionado acima c/c o artigo 73, IV[22], ambos da LRE, que no caso de descumprimento pelo devedor de obrigação inserta no plano de recuperação judicial durante o período de supervisão, haverá a convolação da recuperação judicial em falência.
Seria razoável que os credores e a recuperanda pudessem convencionar para que fosse concedida uma tolerância de alguns dias para a empresa adimplir com suas obrigações assumidas no plano de recuperação judicial, por exemplo?
Por fim, sabemos que os editais de que trata a LRE são dispendiosos, morosos e muitas das vezes não possuem o alcance necessário, tornando-se até mesmo ineficazes.
Assim, seria possível uma negociação acerca das publicações de listas de credores ocorrerem direto no site da empresa em recuperação? Em páginas de suas redes sociais? Ser remetida via e-mail aos credores? Ser disponibilizada diretamente no processo?
Essas e outras questões referentes à otimização dos atos perpetrados na recuperação judicial não devem ser ignoradas, pois sufragam do interesse daqueles que militam na seara do direito falimentar e são totalmente pertinentes.
5. CONCLUSÃO
À vista do esposado no presente estudo, conclui-se que o negócio jurídico processual pode ser celebrado no processo de recuperação judicial, tendo em vista que a Lei n. 11.101/2005 autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil em seu artigo 189.
Nessa senda, tem-se que os momentos oportunos para tal celebração dos negócios jurídicos processuais, podem ser, por exemplo, (i) no plano de recuperação judicial, (ii) na assembleia geral de credores, bem como (iii) nas habilitações, divergências e impugnações de créditos.
No entanto, conforme narrado alhures, ainda subsistem controvérsias quanto sua instrumentalização, visto que a prática do dia-a-dia forense aponta polêmicas e confronto da legislação.
A existência de um procedimento posto e regulamentado é certamente uma conquista do Estado Democrático de Direito. Se, noutro bordo, porém, a forma prevista pelo legislador não serve ou se apresenta desnecessária ou pouco eficaz para o atendimento do fim, é salutar se pensar em adaptação do procedimento, à vista de melhorar o enfrentamento do caso concreto.
Nessa conjuntura, propõe-se plenamente válidas as convenções processuais, extraídas da cláusula geral de contratualização, nos termos dos artigos 190 e 200 do Código de Processo Civil.
Se é possível valer-se da própria vontade dos interessados para que seja tirado o poder do Estado de prestar a tutela jurisdicional voltada à solução do conflito, acreditamos ser também lícitas alterações em determinados aspectos da relação processual, sem retirar do Poder Judiciário a função de dirimir o litígio em si.
Podemos dizer que a convenção processual não visa solucionar o conflito, mas apenas regulamentar, com uma nova roupagem, para que atenda melhor às partes, o próprio método de solução, isto é, a jurisdição. O papel do magistrado fica adstrito a fiscalizar a capacidade dos agentes, a ocorrência de forma adequada e se o objeto é lícito, não havendo que se falar em homologar tal negociação processual.
Por isso, pode-se afirmar que o negócio jurídico processual é válido e eficaz desde sua formação, ressalvadas as hipóteses em que a lei expressamente exigir a homologação.
Assim, as partes deixam de ser apenas meros coadjuvantes e passam a ser protagonistas procedimentais do processo, o que pode ajudar a desafogar um gargalo inegável existente no Judiciário e tornar mais célere a resolução do conflito.
Um estudo feito em 2006, realizado pela Fundação Getúlio Vargas, encomendado pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, apontou que são os cartórios os responsáveis por 80% (oitenta por cento) dos atrasos nas ações judiciais, sendo que os processos ficam “parados” por até 95% (noventa e cinco por cento) do tempo total de seu processamento – o chamado “tempo morto”.
O diagnóstico é simples, os autos ficam repousando nos cartórios sem o devido andamento, notadamente por falta de recursos humanos e tecnológicos adequados, enquanto as partes aguardam a solução de seu litígio sem nada poder fazer, ao passo que poderiam – por meio da convenção processual – adequar o procedimento à realidade e especificidade de seu caso, tornando-o mais célere e eficaz.
Com a recuperação judicial não é diferente. A legislação falimentar prevê uma séria de procedimentos e regras que a depender da região ou Comarca onde sejam aplicadas, além do perfil das partes envolvidas (lembrando que o Brasil é um país de tamanho continental), tornam-se extremamente morosas e burocráticas, contribuindo para a lentidão no trâmite do processo recuperacional, o que, indubitavelmente, acaba por prejudicar o soerguimento da sociedade empresária, bem como frustra a expectativa dos credores afetos ao par conditio creditorum.
Além da morosidade, à obviedade, o impacto econômico-financeiro também se revela igualmente importante. Isso porque, o regramento da recuperação judicial pressupõe um alto custo para a recuperanda e seus credores, que na maioria das vezes se veem frente a uma habilitação de crédito desproporcional e dispendiosa com relação ao crédito buscado.
Explica-se: não raras as vezes, o credor enfrenta um alto custo para a habilitação de seu crédito, contratação de advogado, deslocamento à Assembleia Geral de Credores etc., tendo, por outro lado, que experimentar deságios de grande monta, carência para o início do recebimento de seu crédito, condições diferenciadas de recebimento (em produtos, serviços, debentures etc.), muitas vezes tendo esse custo superado o valor perseguido na recuperação.
Para a recuperanda não é dessemelhante, pois extremamente custosa para a empresa em crise é a recuperação judicial, onde são pagas, por exemplo, as publicações de editais previstos na LRE, o advogado falimentar, os custos com o conclave assemblear, com o administrador judicial, dentre outros, muitas vezes inviabilizando sua reestruturação e retorno saudável das atividades empresariais.
Desse modo, entendemos ser de grande importância ao direito brasileiro a aplicação dos negócios jurídicos processuais na recuperação judicial, com o fito de mitigar custos desnecessários, dar celeridade ao processo, adaptar o processo à realidade dos jurisdicionados, elevar a probabilidade da recuperanda se soerguer, prestigiar os princípios insculpidos na Constituição Federal da República (Livre iniciativa, função social da empresa etc.), bem como na própria Lei de Recuperação Judicial (Preservação da empresa, proteção ao concurso de credores etc.), além de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país e enfrentar as mazelas do Judiciário.
6. REFERÊNCIAS
Almeida, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil / Diogo Assumpção Rezende de Almeida – São Paulo : LTr, 2015, p. 57. apud. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
Barros Neto, Geraldo Fonseca de. Aspectos processuais da recuperação judicial / Geraldo Fonseca de Barros Neto – Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.
Bezerra Filho, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo / Manoel Justino Bezerra Filho. – 13. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.
Costa, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista de Magistratura, São Paulo, ano 16, n. 39, jan./mar. 2015.
Cunha, Leonardo Carneiro da. Negócios processuais / coordenadores: Antonio do Passo Cabral, Pedro Henrique Nogueira. – 3. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 41
Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1., p. 376-377
Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento / Fredie Didier Jr. – 19. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2017, p. 426.
Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 203, v. 1., p. 477.
Exposição de motivos apresentada em parecer de n. 534, de 2004, pelo Senador Ramez Tebet – (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=580933) – acesso em 08/06/2018.
Grau, Eros Roberto. Elementos de direito econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981.
Mamede, Gladstom. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas / Gladstom Mamede. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018, p. 122.
Medina, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil e os negócios jurídicos processuais no âmbito do ministério público. Revista dos Tribunais: São Paulo. p. 317
Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 188.
Müller, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da produção da prova / Julio Guilherme Müller. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 93.
Parecer n. 534, Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Ref. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 71/2003. (www.senado.leg.br/web/atividade/materiais/-/materia/63304) – acesso em 08/06/2018.
Projeto de Lei da Câmara n. 71, de 2003 – Lei de Falências (www.senado.leg.br/web/atividade/materiais/-/materia/63304) – acesso em 14/06/2018.
Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 342
[1] Müller, Julio Guilherme. Negócios processuais e desjudicialização da produção da prova / Julio Guilherme Müller. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 93.
[2] Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento / Fredie Didier Jr. – 19. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2017, p. 426.
[3] Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo (Código de Processo Civil).
[4] Almeida, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil / Diogo Assumpção Rezende de Almeida – São Paulo : LTr, 2015, p. 57. apud. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
[5] Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 342.
[6] Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 203, v. 1., p. 477.
[7] Didier Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1., p. 376-377
[8] Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 188.
[9] Medina, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil e os negócios jurídicos processuais no âmbito do ministério público. Revista dos Tribunais: São Paulo. p. 317.
[10] Projeto de Lei da Câmara n. 71, de 2003 – Lei de Falências.
[11] Parecer n. 534, Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Ref. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 71/2003. (www.senado.leg.br/web/atividade/materiais/-/materia/63304).
[12] Grau, Eros Roberto. Elementos de direito econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981.
[13] Exposição de motivos apresentada em parecer de n. 534, de 2004, pelo Senador Ramez Tebet – (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=580933).
[14] Mamede, Gladstom. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas / Gladstom Mamede. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018, p. 122.
[15] Costa, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista de Magistratura, São Paulo, ano 16, n. 39, jan./mar. 2015.
[16] Embora a Lei n. 11.101/2005 em seu art. 189 faça menção ao revogado Código de Processo Civil de 1973, seguindo a interpretação lógica do dispositivo tem-se que a partir da vigência do Novo Código de Processo Civil de 2015, este novel codex passa a ser considerado como a referência legal para fins de aplicação subsidiária.
[17] Barros Neto, Geraldo Fonseca de. Aspectos processuais da recuperação judicial / Geraldo Fonseca de Barros Neto – Florianópolis: Conceito Editorial, 2014, p. 28.
[18] Bezerra Filho, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo / Manoel Justino Bezerra Filho. – 13. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 447.
[19] Art. 6º. A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
- 4º. Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.
[20] Art. 61. Proferida a decisão prevista no art. 58 desta Lei, o devedor permanecerá em recuperação judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que se vencerem até 2 (dois) anos depois da concessão da recuperação judicial.
[21] §1º. Durante o período estabelecido no caput deste artigo, o descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano acarretará a convolação da recuperação em falência, nos termos do art. 73 desta Lei.
[22] Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial:
IV – por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de recuperação, na forma do § 1o do art. 61 desta Lei.
Ricardo Pires é Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC Campinas (2017 – 2018), Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC Campinas (2009 – 2013), membro efetivo da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial, Comissão de Direito Processual Civil e Defensor Dativo da Comissão de Ética e Disciplina, todas da OAB/SP, 3ª Subseção, de Campinas/SP (triênio 2016/2018), Advogado falimentar e empresarial, Sócio do escritório Bismarchi, Casarotto e Peccinin Sociedade de Advogados